Doutor?

Doutor, não sinto nada além de um cansaço quando subo o morro lá no meu sítio. E antes não era assim e isso me incomoda. Não pode uma pessoa ainda com 51 anos estar cansada assim...

Alguns dias depois, após exames rotineiros e eletrocardiograma de esforço, nada era acusado... nenhuma isquemia foi identificada.

Alguns dias mais tarde, a mesma reclamação.

Então veio a proposta do Dr. Walace: vamos fazer um “tira-teima”? Como assim doutor?

- Você me disse que vai de férias no próximo dia 5 de julho, então te proponho nesse dia fazermos um exame mais invasivo... Vamos fazer um Cateterismo (Cineangiocoronariografia)...

Mas Doutor? Disse meio assustado ao médico... Que risco tem isso?

- Oras, O mesmo que atravessar a rua... e eu pensei comigo... dependerá muito da rua... desde que não seja a 23 de Maio...

E ele insistiu ainda mais a me convencer:Assim você já vê o que tem e depois descansa suas férias tranquilo...

Topei a parada. Me internei... o Dr. José Augusto e seu companheiro faziam os procedimentos colocando o cateter, enquanto comentavam os resultados dos jogos de futebol de domingo... uma forma de suavizar um pouco o ambiente...

Mas, como eu tinha avisado na empresa antes de sair... como sou meio azarado, certamente devem encontrar alguma coisa...

Dito e feito! Quando ambos pararam de conversar sobre futebol eu já deduzia que o assunto era meio complicado.

Perguntei o que se passava e ele disse que o meu médico cardiologista e equipe iria conversar comigo... este meio dito para um bom entendor já era o dito inteiro...

Pensei comigo... estou ferrado!

Vieram em mais de um ao quarto... pensei com meus botões... acho que encontrei o que procurava... Tentei argumentar que estava de férias, precisava resolver umas coisinhas, etc... e depois marcaríamos uma data e tal... Ledo engano... os argumentos deles foram mais fortes... você está com sérias obstruções nas artérias e se não fizermos uma intervenção imediata, você pode nunca mais pensar em férias, aliás... não pensará mais... só isso...

Bom, o que resultou é que não me deixaram mais sair do hospital... no dia 7, uma 4ª. Feira, estava eu indo em direção agora à sala de cirurgia para colocar pontes no coração... uma “Radial” (tirada do braço esquerdo) e outra “Mamária” (tirada do lado do pulmão).

Procedimento bem sucedido, acordei sei lá que dia e hora na UTI em recuperação...

Isso foi lá em 2004... já se passaram cerca de 6 anos...

Após esse fato, minha vida foi passou a ser ainda mais controlada. Apenas que nos exercícios físicos sempre deixou a desejar... e tempo para isso.... e tempo para a vida deveria eu pensar!

O fato é que São Paulo é uma cidade que nos consome diuturnamente... o trânsito uma calamidade, por mais que façam sempre é um paliativo, e eu perdia cerca 1 hora para ir e mais 1 hora e tanto para voltar para casa... tempo esse que poderia estar sendo usado para eu mesmo, me exercitando uma pouco.

Afora o stress do trabalho, a vida sedentária levaria em pouco tempo o organismo a produzir as coisas ruins que viriam provocar novas obstruções nas artérias...

Tendência havia, histórico também... Colesterol sempre acima, triglicérides, depois mansamente veio a glicemia se descontrolando e o diabetes em pouco tempo se mostrou instalado e reticente.

Pensava, puxa... adquiri já uma certa surdez, em um acidente de carro tive minha L3 quebrada, o ronco durante o sono também identificou uma apnéia do sono, no sítio quebrei costela, rompi músculo da panturrilha, depois em 2008 descobri uma nódulo maligno que provocou uma tireoidectomia total... puxa... quanta coisa em um só corpo...

Bom, tudo isso ainda não fora suficiente!

A empresa anualmente também solicita que se faça um exame periódico e eu aproveito para fazer o meu check-up, cuidando mais delicadamente do meu lado coronariano.

Este ano, descobri, mais uma vez com antecedência, mais uma isquemia forte e sinalização no exame de cintilografia, que havia alguma coisa errada... Isso foi no dia 20 de Afosto... e novamente o meu cardiologista Dr. Walace me recomenda um novo cateterismo.

Marcado o procedimento para 1º. de Setembro, detectado o local da obstrução, foram mais duas semanas de agonia até a recomendação necessária: Vamos ter que fazer aí uma Angioplastia... colocaremos um “Stent” farmacológico...

Bom, lá estava eu agora só com meus próprios botões a pensar... puxa vida... Acho que sou o único no mundo que nesse tempo todo só foi para o hospital quando estava com saúde!

Mas foi mesmo, e felizmente, antecipando-me à situações que sabe-se lá como seria...

Lamentações à parte, hoje, dia 21 de setembro de 2010, estou eu a escrever deste quarto 426 do HCor, para comunicar que estou bem de um procedimento ocorrido pela manhã, e agradecendo os médicos e enfermeiras por mais um sucesso contra um mal que deve afetar um monte de cidadãos... mas como medicina preventiva não é privilégio para a grande maioria sofrida deste meu país, no qual “nunca na história deste país”, durante as eleições, se prometeu tanto nessa área como nesse pleito, e a realidade nua e crua é a que se vê nas portas dos hospitais públicos... só a miséria social escancarada!!!

E o povo, ora o povo... mais uma vez se iludindo... e isso é outra coisa que me maltrata demais o coração, isso realmente deixa a gente muito triste!

Em breve estarei aposentado e fora dos benefícios concedidos pelo empregador, e então, um novo stress a matar aos poucos: os planos de saúde... mais uma vez olho para o planalto... e fico pasmado a lamentar como estamos longe do grau de desenvolvimento dos países em que vivi: Alemanha e Chile... então, estará nesse futuro este cidadão que dedicou uma vida ao trabalho, hoje já se completaram 38 anos de contribuição, e o que me espera é uma mísera aposentadoria, consumida pelo Plano de saúde e pelo custo dos medicamentos, cuja "sexta básica" hoje é composta por 7 medicamentos: Metformina 850mg, Amaryl 6 mg., Atenolol 50 mg, AAS 100mg., Lipitor 20mg, Synthroide100mg e agora por último o Plavix 75mg... que devo tomar por uns tempos por causa do novo espaguete (Stent)... tudo isso hoje pela bagatela de uns US$150 mensais...

Voilá... ça la vie!

Por enquanto tenho uma carteirinha de identificação do HCor, no qual sou considerado “freguês de caderneta”, um plano Bradesco que ainda permite a entrada, mas... o futuro mal sabemos... Nestas alturas do campeonato, para as seguradoras valemos mais mortos que vivos! E que eles, jocosamente chamam de "vida" no plano...

Até que a morte nos separe! Mas farei de tudo para que ela fique longe... só depois de muitos “espaguetes”... e olha lá... tenho uma missão: encher o saco de muita gente ainda! Principalmente esse bando de assaltantes que tomaram o poder e lotearam indiscriminadamente os órgãos públicos, empresas estatais, para-estatais, consulados, etc... uma vergonha que quero ainda ajudar a limpar...

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São Paulo (HCor), 21 de setembro de 2010, 22:57hs

Digni visi sumus Deo in quibus experiretur quantum humana natura posset pati. [Sêneca, De Providentia 4.8]

Nós fomos considerados por Deus dignos de ser experimentado em nós tudo quanto a natureza humana pode suportar.

MARCO ANTONIO PEREIRA
Enviado por MARCO ANTONIO PEREIRA em 21/09/2010
Reeditado em 24/04/2011
Código do texto: T2512632
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