Ensaio sobre o Suicídio

“É tão estranho os bons morrem jovens, assim parece ser.” A música continua e eu abaixo a cabeça deixando que a letra penetre em mim. Os bons realmente morrem jovens, Legião! Confirmo no meu interior. Camões já havia dito algo assim antes quando poetizou seu mundo desconcertado, onde os bons passam grandes tormentos e os maus nadam em mar de contentamento. No entanto, foi Pedro Bial quem, para mim, tudo resumiu em um texto em que inicia afirmando: a morte é ridícula.

A primeira vez que me deparei com a morte era apenas um adolescente, embora já havia ido a alguns funerais, nunca tinha vivenciado nenhum dentro da minha casa. Até aquela tarde.

O telefone da vizinha tocou. A notícia chegava da cidade próxima para onde ela viajara semana antes. Meu avô, que atendera o telefonema, entrou em casa com o acontecido estampado no rosto pálido. Chamou minha avó, que veio acompanhada de minha mãe. Pediu para que sentassem e foi à cozinha. Quando retornou segurando um copo de água com açúcar. Ambas já choravam agarradas uma á outra. Ele tentou ser cauteloso, pediu calma e disse com voz embargada o que já era sabido. A filha deles havia morrido.

Eu estava no quarto nesse momento, sabia que devia sair para tentar ajudar minha avó, que já passava mal e era socorrida pela minha mãe e pelos vizinhos, que inexplicavelmente começavam a encher a casa como se sentindo o cheiro fétido da morte.

Ela era minha tia. Talvez falando assim soe como um familiar distante, mas não era. Crescemos todos numa mesma casa, dos tios era a minha preferida, pelo sorriso, pela humildade, pela juventude que aflorava em si, e por isso senti uma dor enorme no peito quando ouvir a descrição de sua morte. Ela suicidou-se. Desistiu. Saltou para fora da ponte e da vida como anos mais tarde li que o retirante Severino, do João Cabral de Mello Neto, desejou fazer quando pensou ter chegado ao fim de sua jornada.

Uma lágrima começou a brotar nos meus olhos, mas antes que escorressem em minha face foi interrompida pelo chamar do meu nome. Sair do quarto. A casa era toda choro e abraços, o clima estava pesado e a tarde pareceu dissipar-se. Fui convocado naquele momento para ir avisar os outros parentes e amigos que moravam por perto.

Sai de casa em casa repetindo a mesma trágica notícia. Lembrei da história do Lizandro, o mensageiro, que tinha estudado algumas séries antes, porém na minha cabeça só a angustia dominava. A cada casa a mesma situação; era recebido com grande entusiasmo que aos poucos ia se dissolvendo em espanto e dor. Não pude deixar que de observar que o ápice da tristeza era quando me perguntavam como tinha acontecido e eu segurando-me dizia: Ela se matou.

Se a morte é ridícula o que seria o suicídio? Talvez a maneira mais fácil de reconhecermos o quanto nós próprios somos ridículos. A primeira vez que li sobre o ato de tirar a própria vida foi em um romance do Fernando Sabino, O Encontro Marcado. Na história, o jovem amigo do Eduardo Marciano, o Jadir que cometeu tal besteira por ter uma família problemática. Na véspera do ocorrido, o Eduardo revelava ao seu amigo que as vezes tinha vontade de morrer. Discutiram sobre suicídio. Para o Eduardo era covardia, ao menos que antes cometesse algo que marcasse a História, um grande estrago, como matar o presidente por exemplo. O Jadir discordava e afirmava que “quem quer morrer mesmo, não pensa em nada disso, só pensa em morrer”. No outro dia deu um tiro no peito. Li o momento do velório e fechei o livro por alguns dias.

Se a morte é difícil de aceitar o suicídio é pior ainda. O suicídio é condenável, para muitos não é possível ser perdoado e religiosamente é o caminho direto para o inferno. Émile Durkheim, um dos pais da sociologia, descreve o desejo da própria morte como um fato social. Afinal, desde antes de estudar o fenômeno, alguns séculos atrás, o número de suicidas já era assustador.

Essa realidade não mudou. Mas o que leva as pessoas a tão grande desespero? Os fatores são infinitos e muito subjetivos, para alguns, por exemplo, o suicídio não é colocar fim a um sofrimento e sim eternizar um momento de paz e felicidade. Minha tia sofreu depressão pós-parto na sua terceira gestação. Ficou em um estado crítico nos primeiros meses, mas aos poucos foi obtendo melhora. Depois viajou para a cidade do marido levando consigo o bebê e alguns vestígios da doença. Semana mais tarde, sem deixar pistas dos motivos, ingeriu veneno de rato e agonizou no banheiro da cunhada.

O suicídio sim é ridículo. E os bons morrem realmente cedo demais.

Quem nunca desejou morrer? Hoje, já adulto, garanto que o suicídio como possibilidade já passou na cabeça de todos, ainda que de forma leve e camuflada, não há quem não tenha pensado por breves segundos em partir dessa para melhor.

Há aquele que pensa em como seria se ao atravessar a rodovia tropeçasse e deixasse o corpo para ser exterminado por um veículo qualquer. Outros pensam em se enforcar, jogar-se no mar e permitir-se afundar, atirar em si mesmo, prender a respiração ou então rasgar o pulsos com a faca de mesa pronta para cortar o tomate e fazer a salada para os filhos. As ideias são diversas e há quem diga que sejam todas palavras de forças do mal zunindo na cabeça dos que estão longe da luz. Não duvido que seja esse o mesmo anjo triste que o Renato Russo diz está ao seu lado na música Via Láctea, que por sinal pode ser considerada a canção do suicídio, já reparou na letra?

Existe um provérbio bíblico que diz que quem fecha os olhos maquina o mal e quem morde os lábios o executa. Creio que todos nós piscamos, mas alguns infelizmente cravam os dentes em si mesmo e deixam o sangue escorrer pelos lábios.

Eu não chorei naquele dia. Não tive tempo de entender nada do que ocorria e muito menos tempo de acreditar. Isso me persegue. Sonhei com ela muitas noites. No último sonho, há alguns anos, tive uma sensação horrível. Resgatando minhas memórias oníricas recordo que cheguei em casa e lá estava minha tia; conversava com todos e fazia algumas tarefas domesticas. Eu sentia que ela já havia morrido e estafa espantado por que ninguém mais parecia saber disso. Eu gritei com ela e com todos, disse que ali não era o lugar dela, que ela estava morta, mas ela negava, eu tentei expulsá-la e não consegui. Acordei não querendo encarar lugar nenhum.

Talvez seja essa a sensação que fica em toda a família. É difícil acreditar que perdemos alguém que amamos. É como assistir um dia em um filme infantil: “ninguém parte para sempre enquanto alguém se lembrar dele”.

No entanto é mais difícil compreender por que pessoas que queremos para sempre do nosso lado não percebe isso e troca esse amor pelo vazio desconhecido da ridícula morte?

Um amigo meu, Maurício Franco, compôs uma canção que é para mim a mais linda carta de despedida. No refrão em que ele canta: “eu vejo flores em você, lágrimas e dores por você” mostra o real sentimento que sobra em cada um que assisti a velório de uma pessoa querida.

Naquela noite, depois que toda a família viajou para velar o corpo, tranquei-me em meu quarto, apaguei a luz e tentei chorar. Não consegui. Os meus olhos estavam vidrados no além, faiscavam de raiva, muita raiva e tentavam encontrar os olhos mórbidos dela para simplesmente agarrá-los no escuro e perguntar porque. Até hoje não os achei.

Tiago Mota
Enviado por Tiago Mota em 23/09/2010
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