PITCHULINHA, MEU AMOR !

Talvez entre na cota da chamada condição humana: de maneira geral, preferimos destacar em nossos semelhantes o que eles tenham de incomum, de ridículo; às suas presumidas qualidades. Vá numa repartição e pergunte pelo Senhor Fulano; logo um atendente solícito indica: - Tá vendo o baixinho, careca, enrolando no fundo da sala... Ou, caso indague pela Senhora Beltrana, alguém lhe sussurra ao ouvido: - É aquela coroa gorda e cafona, dependurada no telefone!

Sem reclamar, como escreveu João Cabral na peça Morte e Vida Severina (emblematicamente morte antes de vida) “a parte que me toca neste latifúndio” –, reconheço que indivíduos são rotulados e até pagam caro pela má-fama do sobrenome. Partindo do meu quinhão Cardoso-homem sofre como farrista, mentiroso e vacinado contra o trabalho; Cardoso-mulher amarga a sina de branquela, gorducha e vocação para solteirona. Trata-se, claro, de preconceito. Os Cardoso - homem e mulher - são leais, prestativos, honrados. Mas como em toda regra... pelas referências do meu currículo profissional, não consigo arranjar emprego; me resta ficar aqui dizendo o indizível.

Minha prima, Gilda Cardoso, para desmentir estas bobagens: é alta, morena e só não casou em frente a padre e delegado, porque optou por tomar conta dos pais e de um irmão com necessidades especiais (ao pé da letra o moço era doido varrido). Quando seus entes queridos partiram rumo à morada definitiva, ela se sentiu muito solitária e para não cair em depressão “adotou” uma cadelinha, agora companheira para o que der e vier; não foi batizada nem registrada, mas atende pelo carinhoso nome de Pitchulinha.

Antes que me esqueça, preciso esclarecer: “elas” residem em Goiânia... E cachorro na rua, em cidade grande, sabe como é, bobeou a carrocinha leva! Por isto, aonde uma vai a outra vai atrás – mesmo à missa. Na frente da casa “delas” existe um pé de ipê amarelo, que todo mês de agosto se reveste das mais belas flores, intimando a primavera que tome seu lugar na natureza. Estavam “mãe” e “filha” regando a árvore - porque neste inverno o sol foi inclemente –, quando a Gigi, confiante nos bons modos da Pit, deixou ela no passeio para entrar em casa trazendo mais um balde d’água, não sem antes recomendar cuidadosa: - Filhinha, mamãe vai lá dentro, rapidinho. Comporta e não desce pro asfalto, não! A cadelinha, de pijama cor de rosa e enfeitada de lacinhos nas orelhas, abanou o rabinho!

O diabo atenta e o ferro entra! Por cúmulo do azar, tão logo a prima virou as costas a Pit saiu do passeio. A carrocinha de prender animais vadios, caprichosamente passava... De volta, vendo a cachorrinha no maldito veículo, que se afastava, embora vestida somente com um velho robe, a Gilda disparou rua abaixo gritando enlouquecida, para que lhe devolvessem a “filha”. O funcionário da prefeitura não se condoeu – lei é lei – disse. Ela que fosse ao banco e pagasse uma taxa, até o dia seguinte, e poderia buscar a Pitchula no canil da prefeitura. Ou corria o risco de a bichinha virar tira-gosto pro leão no zoológico!

Fora de si, a Gilda não quis saber de papo: aquilo era seqüestro de familiar – e ameaçou processar o homem, o prefeito, o governador... Sobretudo porque a Pitchulinha ainda era virgem, não podendo ser misturada com aqueles cachorrões mal-encarados, tarados! Nem aí pro perigo e se achando a gostosa do pedaço, a Pit provocava os machos com rebolados e reviradinhas de olhos... Após muito choro, promessas, súplicas o homem da carrocinha dispôs-se a libertar a cadelinha. Para ele era apenas um animal a mais, capturado... Mas para a Gigi, a companhia da “filha” fazia diferença. E quanta!

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 29/09/2010
Reeditado em 29/09/2010
Código do texto: T2527167