Café da manhã

Ela acordava muito cedo.

Acendia o fogão de lenha lá na casinha do fundo, uma edícula de madeira, onde tinha uma cozinha mais rústica, separada do quarto e sala pequenas. Nesse quarto dormiam os meninos.

Tempos difíceis pois em uma sucessão de maus negócios, o patrimônio amealhado pelo Seu Antonio estava se diluindo rapidamente. Já era esse o quarto lugar para o qual a família se mudava, desde a venda do armazém. Foram para a Vila São José, depois para Londrina, voltaram pouco tempo depois para o bar com casa anexo. Vendido o bar estava lá naquela “casa da estação” como chamávamos, pelo fato de que ficava em um bairro mais distante do centro da cidade, parte alta, onde tinha uma estação de trem, ramal da Estrada de Ferro Sorocabana, que dali chegava a Manduri, na linha tronco.

Essa casa nos deixou boas lembranças.

Ao acender o fogo, ela costumava pegar os restos de gordura de frituras que guardava, para uso como combustível, que colocava sobre os gravetos mais finos, e, usando apenas um palito de fósforo, rapidamente o fogo se alastrava, aquecendo as madeiras mais grossas e logo a água ia se aquecendo, e também o tacho com óleo para fritar os bolinhos de fubá. Por vezes, uma gata borralheira, que ficara no fundo do fogão, bem quietinha, saía esbaforida esparramando os gravetinhos tão bem arranjados.

Ao mesmo tempo em que preparava os bolinhos, já usava a água sobre o chá Mate Leão, que era queimado na hora misturado com açúcar cristal e brasas incandescentes. A água em ebulição, despejada sobre as brasas, o açúcar e o mate, imediatamente deixava exalar um inesquecível cheiro de chá. Em seguida, ela retirava o carvão apagado.

As economias estavam se esgotando, até o Joãozinho padeiro havia cortado o crédito, de forma, que a zelosa D. Júlia, sem o pãozinho quentinho do dia, buscava toda sorte de iniciativas, para dar o café às nove bocas que já, à essa altura, estavam acordando, espreguiçando-se e preparando-se, uns para o trabalho, outros para a escola.

Assim, mais um dia se iniciava, para aquela família, que já vivera tempos com mais fartura.

Os bolinhos iam ardendo no tacho, ficavam escurinhos, e a massa tinha “um quê” de especial: sementinhas de erva-doce, misturadas no fubá com leite, ovos e fermento.

Nem bem eram tirados do azeite fervente e colocados em uma fina peneira de arame para deixar escorrer o excesso, já começavam a ser devorados pela turminha faminta, com o chá mate servido nas canecas.

Bons tempos, quando as agruras não eram por nós percebidas, e o sorriso da petizada a se alimentar daqueles inesquecíveis bolinhos logo pela manhã.

Também serviam para levar de lanche para a escola.

Perda de alimentos nessa época, nunca vi, e olha que nem geladeira existia.Sobras de arroz ou macarrão eram transformados em bolinhos fritos. Acho até que o “tempurá” os nipônicos aprenderam com ela.

Me recordo que também tinha leite. Eu estava incumbido de buscá-lo na ordenha, em uma propriedade não muito distante, defronte a estação de trem.

D. Julinha, escolhia o litro que ela acreditava que coubesse mais líquido. Havia já comparado com outros, transvazando água de um litro comum para aqueles. Assim, os litros de Ron Merino, eram os prediletos, pareciam mais “gordinhos”. E o incrível é que realmente até os litros apropriados para leite comportavam menor volume. Esses vasilhames de leite, hoje não mais são usados, que não em desenhos animados. Qualquer pouquinho a mais, já tornava mais feliz a mãe zelosa, a fazer economia em todos os detalhes que se possa imaginar.

Os litros de Rum eram então lavados cuidadosamente e ficavam preparados para o dia seguinte, quando eu saía, ainda o sol por nascer.

Divertia-me pelo caminho, andando ligeiro e adorava ver a ordenha, e o brincalhão “retireiro” quando apertava as úberes da vaca virando um dos tetos para quem o observava, os quais ficavam respingados de leite.

Alguns no momento de retirada do apojo costumavam espumá-lo direto do teto da vaca em uma caneca, que já continha um pouco de Conhaque de Alcatrão. Diziam isso ter uma propriedade medicinal milagrosa, expectorante dos melhores que os encontrados no boticário.

Logo após, o “retireiro” começava a encher o litro, sob o meu olhar atento para que ficasse cheio até a boca – recomendação da D. Júlia.

Voltava todo feliz, pois estava com o litro cheinho, e célere iniciava o caminho de retorno.

As calçadas eram tortuosas devido as raízes das árvores, sob as quais costumava ficar um limbos escorregadios, com os quais eu tomava muito cuidado. Tanto que nunca escorreguei neles. Mas o destino quis fazer diferente e foi em um tropeção na parte seca da calçada que fui ao chão, rolando e me ralando para proteger o sagrado litro de leite, já quase chegando em casa.

Que felicidade, acho que nunca conseguiria uma melhor proeza, levantei-me assustado e meio abestalhado, mas o precioso litro de leite estava intacto. Ao que uma senhora que vira o tombo, olhava com olhos arregalados, aquela cena curiosa.

Bom, o leite da D. Julinha chegou em casa direitinho, acho que ela mal soube do ocorrido, não podia preocupá-la e eu, nem me lembrava de alguma possível dor, pois estava radiante com a minha agilidade a proteger o leite como se fosse uma criança no colo. Certamente, tivesse perdido o leite com o litro quebrado, a tristeza da D. Julinha seria imensa.

Ah! Que saudades desses tempos, ainda menino, deixava o leite em casa. Devia ser período de recesso escolar, pois, cumprida a obrigação, já podia sair livre com o estilingue e as pedrinhas no embornal a caçar passarinho, nadar no rio, andar pelos pastos até a praiazinha da “Baía do Juda”, remanso gostoso do lago formado pela barragem do Rio Paranapanema, descer o rio em jangadas de bananeira.

Logo cedo já avistava as mulheres que saíam a buscar lenha na mata, que armazenavam em grandes quantidades nos quintais. Na volta delas, parecia uma carreira de formigas, todas com enormes feixes de lenha na cabeça, protegida por uma rodilha de pano. Lembrava muito a minha primeira cartilha, Caminho Suave, na parte que ensinava a pronúncia e forma de escrever o fonema “nh” – Lenha, Nhá Maria... etc... Saudades dos momentos das primeiras letras. Bom, no formigueiro, aliás, na casa delas, depositavam a coleta do dia. Era muitos metros cúbicos de lenha. Houve até um caso de incêndio, em uma casa que estava com uma grande quantidade de madeira armazenada dentro, já que não era usada. Fogo difícil de apagar, sendo que a água tinha que ser retirado de poço, e repassada de uma a um até o local, que ficou totalmente carbonizado em pouco tempo, tal a quantidade de combustível.

Vivendo tempos hoje melhores, nos quesitos recursos e certo conforto, incomparável com aquela época, atravessado já um bom caminho, fico a pensar saudoso de minha mãe e agora há pouco, lembrando-me muito dela quando lavava e enxugava os pertences do café da manhã, me deu o “insigt” de deixar aqui registrado essas coisinhas singelas, mas para mim de grande significado.

Minha mãe nunca tinha perdido o tino político. Nunca deixara de votar em nenhum pleito, até nos tempos que já lhe faltavam forças e as idéias já não eram tão lúcidas, eu a levava até a sessão eleitoral, para que cumprisse o dever civil. Votava desde menina dizia, assim que pode. Há pouco tempo as mulheres tinham adquirido o direito de exercer sua cidadania. O Getúlio deixou mudanças realmente fortes. Ela sempre teve o cuidado de escolher seus representantes e deles tinha suas impressões, cujas falácias muito comuns, não lhes garantiam o voto dela.

Porque lembrar disso também? Minhas crônicas, invariavemente acabam esbarrando nisso... Porque amanhã é dia de eleições gerais no Brasil. Todos os cidadãos terão que ir até a urna depositar suas esperanças. E eu, aqui, fico lembrando-me dela, que lá do céu talvez esteja acompanhando e triste nossa dificuldade. Apesar do avanço da tecnologia, votos eletrônicos, rápido escrutínio e divulgação quase “on line” dos resultados, os homens que devemos escolher amanhã, certamente não agradariam a mamãe. Certamente, diria ela, como pode o povo estar tão cego elegendo gente que durante todo o tempo mentiram?

Como pode, no tempo do Ademar, certamente roubavam também, mas em tempos que não existia a televisão, as câmeras ocultas a desmascarar os corruptos. Naquele tempo, certamente estariam mortos! Mas mesmo assim, os homens do partido usam de má fé e isso não os deixa no ostracismo. Em um país sério, acabaria o partido e iriam todos presos, se não fuzilados dependendo do lugar. Outros, de vergonha praticariam suicídio. Mas aqui?! Que coisa mais incrível!

Todos perderam, o que costumava-se dizer, a vergonha na cara!

É realmente, os ensinamentos da escola dela foram extremamente fortes, lá ainda menina no Grupo Escolar Ataliba Leonel – década de 1930, escola pública, quando ensino pago jamais se sonhava que pudesse um dia vir a existir. Com os recursos de hoje, a velha cartilha “Caminho Suave” há muito ficou esquecida no tempo, formavam cidadãos!

Diria ela, hoje temos recursos de “sofware” para apresentações como o Power Point, o “Word” com corretor automático para escrevermos até errado, “Excel” para os cálculos mais complexos – hoje nem raiz quadrada os alunos sabem calcular. Calculadoras com as HP´s, nem se podia imaginar, mas no entanto, o que ocorre? O país está gerando uma enorme quantidade de pessoas que saem da escola sem saber pensar!

A escola de então, não ensinava o básico para que a população apenas atendesse os Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), que considera a quantidade de analfabetos ou o grau de instrução da população de um determinado país. Não fosse isso seria então pior, diria ela. Ficaria atônita a pensar, Meu Deus, como poderão assim eleger seus representantes no parlamento e no executivo do país, dos Estados, das cidades?

O que a escola ensina hoje?

É minha mãe, acho que sua infelicidade seria imensa! Melhor que não tenha visto essa desgraça em vida!

Amanhã, a esta hora, estará sendo depositado nas urnas a esperança de um povo, o qual, com todos os recursos de “media” ainda não sabem quem são os candidatos ao Senado, à Câmara Federal e às Assembléias Legislativas dos Estados. A campanha se concentrou, como sempre, para Presidente, e os candidatos que os partidos apresentaram foram de uma qualidade pífia, sem expressão alguma, sem projetos, sem planos para o país. Ficaram em uma cansativa e desgastada retórica, numa depreciável forma de buscar os votos dos eleitores com promessas sem o menor embasamento econômico.

É sórdido, triste, lamentável, mas é a pura verdade, nua e crua!

Mas, minha mãe, deixe esse sofrimento para nós os vivos que ainda penam cumprindo sua missão na Terra! Descanse tranquila na sua eterna morada! Você fez muito mais do que podia imaginar, e de forma espontânea, apenas nos transmitindo para seus filhos e filhas algo muito mais precioso que talvez tenha faltado à lucidez das mães dos políticos das atuais gerações, que sequer sabem o que é Honra, o que é Caráter, o que é senso de Justiça, o que é ser um simples cidadão!

A benção Minha Mãe! Interceda a Deus aí, não mais tanto por mim, mas para o meu país, para que seja dotado de melhores pessoas a zelar por essa maravilha que nos foi dada! Quem sabe de melhores dias possam fruir meu filhos!

Obrigado, mãe, pelo seu Café da Manhã dos bons tempos!

São Paulo, 02 de outubro de 2.010.

MARCO ANTONIO PEREIRA
Enviado por MARCO ANTONIO PEREIRA em 02/10/2010
Reeditado em 12/05/2013
Código do texto: T2533579
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