Na ponta da agulha (EC)
 
A família era dada a extravagâncias. Fora assim quando casara, há quase trinta anos, e escolhera uma canção diferente como marcha nupcial. O sacerdote se recusara a tocar Led Zeppelin, mas consentira em realizar a cerimônia aberta em um jardim com outra canção moderna. Imagine se ele tivesse comparecido à colação de grau das duas sobrinhas, uma formada em jornalismo e a outra em teatro. A primeira escolhera o “funk” da cachorra, ou coisa parecida, que dizia entre outros agravos auditivos “late que estou passando”. A atriz começara e terminara o discurso com “merda” para dar sorte.
 
Zelinda, uma pedagoga, participava ativamente nas atividades da paróquia, inclusive aconselhamento de casais. Zé, envolvido profissionalmente com a psique humana, professor universitário, conhecido nacionalmente por suas palestras e artigos sobre o velho e novo amor. Haviam concordado em viver um casamento aberto, o que não quer dizer uma relação hipócrita e menos ainda promíscua, já que conviviam como bons amigos e irmãos desde que Zé caíra doente e Zelinda tivera que dar a ele desde o banho até a comida na boca.
 
No início pensaram que era uma fase, mas o tempo foi passando e quando viram a libido do casal saíra porta a fora. Combinaram entre choro e abraço que ambos viveriam na mesma casa, usufruiriam do patrimônio adquirido por força de seus trabalhos, dos filhos, dos netos e dos amigos em comum como cabe a um casal cujo vício e costume de viver junto ainda não acabara. Ciúme "trabalhado", ambos teriam direito a manter relações com outras pessoas, resguardado o ambiente doméstico e preservado o respeito mútuo. Não precisavam dar satisfações à comunidade, mas evitariam situações de embaraço.
 
Zé, que vivia louco para pular a cerca, mas não queria casar novamente, se sentiu entusiasmado para namorar mulheres com a metade da sua idade. Zelinda estava mais interessada em participar de encontros místicos de final de semana, daqueles em que prometem transformar sua vida  sem nenhum esforço. Portadora da bandeira da paz e do bem, se agarrava às árvores inocentes que seriam derrubadas, defendia os animais em extinção, adotava crianças e adolescentes aos finais de semana.
 
Estavam entre os dez casais escolhidos para o programa de televisão sobre relações duradouras e casamento perfeito. Agora tocava como introdução ao programa que iria iniciar em alguns minutos a sua marcha nupcial: “Eu sei que vou te amar por toda a minha vida...” Na ponta da agulha estava o discurso de amor perfeito.

                                        
 
Este texto faz parte do Exercício Criativo – “Na ponta da agulha”.
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meriam lazaro
Enviado por meriam lazaro em 08/10/2010
Reeditado em 18/01/2011
Código do texto: T2544566
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