DOÇURA OU TRAVESSURA ?

Qualquer de nós, alguns mais outros menos, mergulhando nas sombras do ontem encontra pecados mortais, que condenem ao inferno - todavia o Deus no qual acredito não cobra taxa de pedágio aos crentes, nem fica de tocaia armado com fuzil para matar os infiéis. Entretanto, maldades e injustiças praticadas contra a menor de suas criaturas são tomadas como se feitas a Ele. Só a consciência do mal causado e o arrependimento definitivo abrandam um típico desprezo, que em certos casos experimentamos por nós mesmos. Por que somos ora altruístas e caridosos, ora perversos e mesquinhos? Aos obsequiosos que porventura queiram converter-me, antecipadamente dispenso o lero-lero. Não tenho pretensão de ir para o céu.

Dentre as inúmeras coisas na vida, que assumidamente reconheço não ter tido sabedoria e paciência no trato, está o Dia das Bruxas (importado dos Estados Unidos). É quando crianças fantasiadas de seres noturnos batem às portas das casas, e se atendidas perguntam: - Doçura ou Travessura? Caso a opção seja Travessura elas aprontam alguma arte (no geral sem graves consequências) e se vão. Doçura sendo a resposta, manda a regra da brincadeira que se vá ao armário e lhes traga guloseimas; assim agradando aos monstrinhos que felizes partem na busca de outra porta.

Certa vez que alguém assim vestido tocou a campainha da minha casa, e eu fui atender, ouvindo a pergunta me danei - como em mil ocasiões, vida afora -, daí porque me envergonho e me arrependo. Era um garoto pelos sete anos, sozinho, fantasiado de vampiro: roupa escura, capa preta caída nos ombros e chapéu em forma de cone, igual àqueles usados pela PM para desviar o trânsito. Contudo, incrivelmente tímido, quem sabe pelo ridículo da vestimenta, ou porque ali estivesse obrigado pelos pais, sei lá, cumprindo tarefa da escola. De sua voz vacilante e débil, quase não entendi o: - Doçura ou Travessura? Creiam, compungidos leitores destas confissões inconfessáveis, este abjeto que vos escreve, entreaberta a porta, rosnou: - Vá pros quintos do inferno, Coisinha Ruim! Ou algo ainda mais idiota. O menino retirou-se decepcionado, embaraçando nas próprias pernas, sem dizer uma palavra nem fitar meu rosto... Até que o barulhinho da chave girando na fechadura, me fez tomar tento da barbaridade que eu havia cometido! Quis chamar o vampirinho e implorar-lhe perdão, mas como por magia ele evaporara. Daí me torturarem estas lembranças.

Domingo último, novamente 31 de outubro - Dia das Bruxas -, já de-noitinha atendi um chamado à porta de casa. Eram quatro meninos e uma menina vestidos de monstrinhos. Da rua repetiram a pergunta que anos a fio, dolorosamente, ocultei no silêncio dos covardes. Mal terminaram, de súbito, respondi: - Doçura! E me embasbaquei no alpendre. A garotinha ordenou: - Agora, traz doce pra nós! Diligente, obedeci. Agradeceram-me e ela guardou a caixa de bombons numa sacola. Ao vê-los sair para continuar a brincadeira, rezei uma breve oração (coisa rara!) a fim de que nas outras residências não fossem recebidos por alguém de espírito medíocre como o meu. Pecado nenhum tem perdão! Ainda que tarde, saiba o vampirinho triste sobre quem derramei o fel dos meus fracassos: chorei convulsivamente, envergonhado de mim, enquanto escrevia a crônica. E não foram lágrimas de jacaré. Anjos e bruxas existem!

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 07/11/2010
Reeditado em 19/01/2011
Código do texto: T2601225