AURÉLIO

Ontem eu estava fazendo palavras cruzadas no banheiro, um vício maior do que a necessidade fisiológica que é obrigatória lá naquele meu espaço sacrossanto de leituras e divagações outras além das necessidades do corpo físico. Enquanto esvazio as vísceras, alimento o espírito. Acho que é apenas mais uma idiossincrasia. Alguém pode achar que é uma loucura, um disparate, um despropósito, um contra-senso, um despautério, uma discrepância, uma insalubridade. Não tem problema. Eu assumo meus desatinos onde quer que seja em busca de conhecimentos novos.

Foi lá que descobri que este ano comemorou-se, ou melhor, foi festejado com muita parcimônia de palavras e manifestações literárias, o centenário do criador de um dos objetos mais conhecidos no Brasil, depois da televisão e outros meios menos formadores de gente que gosta do conhecimento: Aurélio Buarque de Hollanda faria cem anos em maio deste ano. Andei fazendo umas buscas e descobri tímidas homenagens pela imprensa nacional, exceto pelo estado de Alagoas, onde nasceu e foi muito festejado. Nem o Rio de Janeiro, onde dedicou a maior parte de sua vida fez muita questão de honrá-lo tal como merece. Também não se trata de uma injustiça apenas do Rio, mas de todo o país, que acostumou a se render a astros de grande facho luminoso da música, da televisão e de pouca projeção naquilo que é tão caro ao nosso povo visando a uma formação ilustrada. Meteoritos que não deixam rastro nenhum de sua luz.

Estou republicando uma crônica que fiz dezembro do ano passado, quando o meu dicionário estava já em frangalhos e uso-a como uma homenagem tardia a este grande literato e pesquisador, tão imprescindível na minha e em tantas outras vidas cheias de busca por fecundidade.

DICIONÁRIO

Corria o ano de 1986 e a minha primeira filha estava esperando para vir ao mundo. E eu não podia me dar ao luxo de muitos gastos. A gravidez era de risco e o inesperado é sempre companhia da temeridade. Ainda que não seja nenhuma tragédia anunciada, inspira poupança. Juntando isso com os sobressaltos de conviver com um plano econômico a cada mês e reajuste salarial apenas uma vez por ano, temores havia sempre. Imagine comprar hoje um quilo de tomates a um real e amanhã ele ser dois, depois dois e cinqüenta. Era assim que funcionava o tal do dragão da inflação, mesmo com o Sarney, na época presidente e sem atos secretos, convocando a população para agir como fiscal nas ruas para vigiar os preços. Quem trabalhava o dia inteiro mal tinha tempo de fiscalizar seu emprego ameaçado a todo momento pela própria lambança dos planos econômicos dele.

Mesmo assim eu não resisti à tentação e comprei o meu primeiro AURÈLIO, oferecido em quatro prestações fixas (encontrar prestação fixa era como ganhar prêmio em sorteio). E ele solidariamente resistiu, talvez como o maior patrimônio que adquiri em minha vida - pelo menos em meu conceito de valor. Afora as minhas duas filhas, mas isso não se conta como patrimônio intelectual nem material. É muito mais que possam explicar nossas teorias de apego. Não entro no mercado com meus sentimentos postos a avaliações. De lá para cá ele me acompanhou em boletins sindicais escritos quase que diariamente, me acompanhou durante toda a minha graduação e mudou um sem número de vezes de casas e apartamentos. O cuidado quando de seu manuseio era como se estivesse transportando cristais. Sua encadernação é de linhas costuradas.

Agora está chegando ao seu esgotamento físico imposto pelo tempo, esse implacável e impassível senhor das razões e loucuras, das alegrias e das amarguras, assim como faz com gente feita de tutano e osso, neurônio e outros tecidos sem costura. Alguém pode dizer: mas com a wikipédia aí disponível, com um google de todo tamanho, que tolice! Para os muito leigos eles realmente satisfazem. Já para quem se relaciona quase ludicamente e lubricamente com as palavras sabe do que falo. Nele quando o significado traz algum sinônimo lírico, poético ou literário há citação de traços ou trechos de obras literárias exemplificando. Nele há etimologia, há pronúncia. Sem contar que na página em que se está pesquisando algum verbete, há sempre a tentação de namorar outro ali do lado, acima ou abaixo por pura curiosidade ou aquela quedinha inevitável para uma outra palavra. E para quem gosta de pesquisa, a wikipédia não é algo ainda totalmente confiável Enfim não dá para descrever o prazer das consultas quase terapêuticas, da mesma forma que dói a separação.

Ele se vai. Não há mais remendo possível, reencadernações. Não há quem o restaure mais originalmente sem cobrar um valor de uma peça tombada pelo patrimônio histórico, artístico e cultural como merece, aliás. Muito ao meu gosto, mas longe de minhas posses.

E minha filha, vendo o meu drama patético, resolveu me presentear com outro, já que carrega o simbolismo de seu ano de nascimento. Não gosto que se apiedem de mim, mas acho que ela ficou com um dó danado.

josé cláudio Cacá
Enviado por josé cláudio Cacá em 09/11/2010
Código do texto: T2605441
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.