O Mundo da Lua

Dizem que aos nove dias de idade eu estava lá, provavelmente cheio de roupas na noite fria de julho, “assistindo” com o resto da família a chegada do homem à Lua. Naquela noite especial, reuniram-se todos em minha casa à beira da TV; e os acontecimentos daquela noite, de tão repetidos, formaram uma imagem absolutamente clara na memória. Que não pode ser minha.

De qualquer forma, como posso esquecer se nem me lembro? Há fatos que não parecem ter acontecido conosco – eu estava mesmo naquela sala, por exemplo, em volta da televisão de perninhas que transmitia em branco e preto um dos maiores prodígios da ciência do século passado, mas lembrar é privilégio de outros.

Ao longo do tempo, viveria e esqueceria muitas outras coisas, afinal, a alienação não ocorre somente nos obscuros primeiros anos da infância. É natural da memória se tornar seletiva, adulteradora, intervencionista – até já houve quem dissesse que é por conta disto que conseguimos conviver com nosso passado.

Damos adeus a quem somos, de instante em instante deixamos de ser, transformamo-nos imperceptivelmente à medida que nosso cérebro inventa seu maior personagem: o eu que lembramos. Discutimos com “ele”, argumentamos, filosofamos e por fim esquecemos de novo, na tentativa nem sempre bem sucedida de viabilizar esta “convivência”.

Há um eu “de dentro” e um eu “de fora”, um eu “meu” e um eu “teu”, um de hoje, um de amanhã e outro de ontem, evanescente. Desnecessário e irrelevante perguntar quem sou.

Pedaços do mundo e de nós ficam para trás, contudo: “sobram” na luta diária. Pedaços de nós discordam da noção que está tudo bem e clamam por compreensão e entendimento. É que na vida, esta tremenda “obra aberta”, as coisas serão sempre e apenas quase todas certas, não o suficiente para nos convencer. Deve ser por isso que gostamos tanto de livros e filmes, pelo menos daqueles em que tudo se encaixa. Torcemos, no fundo, por um fim que não queremos que chegue nunca. Ansiamos por um sentido, e não nos satisfazemos com a noção de que o sentido, se houver, só existe em um plano subjetivo e projetivo, diferente da realidade. Nossa história segue em frente sem dar tratos à bola, afinal é só mais uma história.

O que me faz lembrar que existem outros, ainda, dentro de nós. Eu os encontro por trás de uma nova gíria, nas ruas, nas casas, nos edifícios onde trabalho, nas festas e nos gestos; depois os regurgito e devolvo, com mais ou menos vida, no seio de minhas histórias. Somos marcados, pra bem ou pra mal, por aqueles que conhecemos. Os poucos que nos impressionam sobreviverão, para sempre na memória, imprecisos amálgamas que nunca chegaremos a apreender por inteiro, focados e reais. Há também um “você” de dentro, um “eu” que é seu, a maravilha do “nós”. Sim, pois se não chegamos a nos conhecer de verdade, mutantes que somos, que diremos dos outros, que só sei humanos porque assim aprendi a chamá-los, usualmente tão distantes que estamos uns dos outros.

Olho para trás e me engano, que eu gosto. Digo que o eu de ontem é melhor que este de agora – aquele que cria incondicionalmente no poder levitador das relações humanas. Que cria no Homem, na História e na Ciência, em tantas maiúsculas que já nem me lembro mais. Depois volto a cara com desgosto e admito que minha dose diária e atual de pragmatismo faz-me bem mais feliz.

Acredito ainda no Sonho, esta quimera que nasce da liberdade infinita de nossas almas. E cada vez menos no real, posto que é fátuo, no crescimento individual, posto que é subjetivo, e na experiência, posto que é tão individualista - farol de popa que só presta para iluminar o passado.

Mas este é o “eu” de hoje, passará também. Amanhã nova mistura habitará este corpo, o crente e o descrente eternamente em conflito, da mesma forma o sonhador e o realista, o novo e o velho, eu e você. Um dia terei perfilados todos aqueles que fui, em frente à tela que dirá “fim”. Espero ter tempo para ler os créditos, descobrir quem fazia o papel de quem, o autor daquela música que me tocou tão profundamente lá no começo do filme. E, se Deus quiser, tempo também para tirar o copo de refrigerante e o saco de pipocas da cadeira, levá-los para a lixeira e fechar a conta com um comentário sarcástico a respeito da qualidade do roteiro.

(publicado no caderno ALMANAQUE do jornal o Estado do Paraná hoje, 24 de setembro de 2006)

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 10/10/2006
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