Bons e Velhos Amigos

Dia desses, minha irmã, Déia, me perguntou a diferença de estória e História. Expliquei a ela que estória raramente se usa atualmente porque foi convencionado que as duas formas “corretas” são História (como letra maiúscula; em se tratando de fatos históricos e da matéria História) e história (com minúscula; quando se vai contar uma história). Vou exemplificar.

Em 1968, os Beatles lançaram, no álbum The Beatles (o icônico Álbum Branco), a música Back In The U.S.S.R. Creditada à dupla - e que dupla! – Lennon-McCartney, ela foi, na realidade, composta principalmente por Paul.

McCartney conta que sempre ouvia os americanos que saíam do país reclamarem da saudade das coisas da sua terra (hamburger, carrões, lavanderias automáticas). Isso o incomodava, pois parecia uma exaltação ou insistência arrogante em demonstrar o quanto eles se consideravam "melhores". Afinal, saudade é saudade, independente do teto que lhe caiba.

É bom deixar claro que o período era de pós-guerra, ou pior, de Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética (cuja sigla, vocês já devem ter se ligado, é U.S.S.R.) e as relações humanas eram baseadas na polaridade e preconceito (novidade, né?). E mais: os Beatles eram considerados pelo Governo soviético arma de propaganda capitalista. Portanto, inimigos nº 1 do regime. Seus discos eram proibidos de serem vendidos. Suas fotos não chegavam à U.S.S.R. Eles não tocavam nas rádios e nem podiam ser mencionados.

Bem, tudo isso na superfície da sociedade soviética, porque, nos guetos, nas salas em frente às radiolas, o Beatles começavam (sem terem consciência disso) uma revolução, lenta, é verdade, e pacífica, mas uma revolução, na terra de Lenin.

Um belo dia, em plena década de 1960, um colunista do jornal Pravda, de Mosou, contou como era possível se construir captadores de guitarra elétrica com peças de telefone. No dia seguinte, todos os orelhões da capital soviética tinham sido depredados. Além disso, alguém descobriu que emulsão de radiografia era bom condutor de som e que era possível se copiar discos sobre as chapas. Criou-se um mercado negro no país e não era incomum ver pessoas ouvindo “Love me do” sobre imagens de costelas fraturadas (relatos contidos no movie-show “Paul McCartney - Live in Red Square”).

Voltando a Back in the U.S.S.R, Paul, então, decidiu que faria o contrário: cantaria como deveria se sentir um soviético (ou russo) que estivesse saindo dos Estados Unidos e voltando para sua pátria, a União Soviética.

Paul foi tão, digamos, bem-humorado que escolheu não uma toada oriental, mas, sim, harmonias típicas dos Beach Boys. Uma sonoridade bem “surf music”; ou seja, totalmente americana. E as ironias, críticas e genialidade do ex-Beatle não pararam por aí. McCartney percebeu que a sigla em inglês da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, U.S.S.R., era, em parte, a sigla dos Estados Unidos da América, U.S., e acabou por fazer uma paródia da canção Back In The U.S.A., de Chuck Berry. Isso fica claro no ponto da canção em que ele canta: Back in the US, back in the US, back in the USSR. Legal, né?

Em entrevista para a revista Playboy, em 1984, McCartney diz: “Eu tinha consciência de como a União Soviética enxergava a música inglesa e como essa música seria mal interpretada pelos chefões do Kremlin, porém a molecada gostava, e isso me fez perceber o quanto aquilo era importante para o futuro da raça humana.”

Mas não pára por aí...

A meu ver, a letra deste rock, de 1968, pedia união e compreensão de maneira poética. Ou seja, não necessariamente na leitura rasa da letra, mas, sim, na abordagem da obra, no contexto e forma como foi criada. Ela diz o seguinte “As garotas da Ucrânia me deixam louco” e “As garotas de Moscou me fazem cantar e gritar”. Nela, o “personagem” ainda pede para ver “a neve no topo das montanhas do sul” e “ouvir a balalaika tocar”. Perceba, ele fala de um povo, de paisagens e de uma cultura que nunca havia visto e que, mal sabia, levaria muito tempo para encontrar.

Para mostrar em quantos níveis de profundidade trabalha a mente dele, Paul armou outra arapuca. Em uma referência à música "Georgia on my mind" (eternizada por Ray Charles), ele escreve “and Georgia is always on my mind” (e a Geórgia está sempre na minha mente). Aqui, o baile está armado, pois você pode interpretar que ele esteja falando da República Socialista Soviética da Geórgia, ou do estado americano da Georgia, ou até mesmo o nome de uma mulher chamada Georgia, já que o trecho que segue é: "come and keep your comrade warm" (venha e mantenha seu camarada aquecido). Eu, em interpretação livre, creio que, mais do que falar de uma delas, ou de todas elas, ele está dizendo: vejo em minha mente que somos todos iguais. Somos todos irmãos. Nem nossas palavras se diferem, nem nossos sentimentos são distintos. Mantenham seus corações aquecidos, meus amigos.

Pois não é que somente em 2003... Ou seja, 35 anos depois da música e mais de quatro décadas após os primeiros acordes dos Beatles, Paul pisou pela primeira vez em Moscou. Ao descer do avião, ele, literalmente, salta da escada para o solo (tal qual Neil Armstrong na Lua) e diz “Back in the U.S.S.R”. Aquele homem nunca esteve ali antes, mas sentia-se como se voltasse para casa. E as pessoas, russos de todas as classes, que depõem ao longo do DVD “Live in Red Square”, não parecem estar vendo ele pela primeira vez, mas, sim, sentem estarem matando a saudade de um velho amigo. Como se estivessem apenas reacendendo os corações há tanto tempo (lá em 1968) conectados.

Pessoas como o então Ministro da Defesa, que assume ter aprendido inglês por causa dos Beatles. Ou o, na época, Primeiro Ministro, Vladimir Putin, que fala que a chegada de Paul é “uma rajada de ar fresco” na relação entre os dois hemisférios. Ou o fundador de uma “beatle band” clandestina, fã inconteste, que relata que a única coisa que ele tinha dos Beatles era uma foto. Uma foto que não tinha nomes. Ele passou mais de 20 anos, por de trás das cortinas de ferro, olhando para aquela foto tentando descobrir quem era Paul, quem era John, Ringo ou George, até que os muros caíram e, como uma ponte construída tijolo a tijolo, os dois lados puderam se dar as mãos.

Viu, Déia, isso que eu acabei de fazer foi contar uma história. Já Sir James Paul McCartney e seus amigos fizeram História – com “H” muito, mas muito maiúsculo.

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