Tempos de “Em tempo”

Então eu resolvi lutar contra a ditadura. Aliás, era o mais comum na juventude dos anos 70 e 80. A vontade de dizer “não” ao autoritarismo gritava nas nossas mentes todos os dias. O nosso sangue fervia a cada atrocidade cometida pelo regime. A cada novo assassinato, sessões de tortura, humilhações e negação do direito de ir-e-vir e todas as formas de constrangimento eram sinais de morte anunciada com a crueldade assumidamente animalesca dos donos do poder. Não era uma luta ostensiva a minha, até porque, em 1979, eu mal havia assumido a maioridade e, ao mesmo tempo, o autoritarismo dava sinais de desgaste brutal: as greves estudantis e operárias começavam a provocar os militares deliberada e decididamente. Os jornais de oposição estavam sendo vendidos nas bancas, apesar de todas as dificuldades. E uma dessas dificuldades se mostrava quando os aliados do poder resolviam incendiar bancas de jornais que vendiam publicações críticas ao sistema. Era sempre pela madrugada! Bem na frente da banca os criminosos assumiam o atentado e pichavam o chão a sigla CCC - Comando de Caça aos Comunistas. Quer dizer, assumiam o ato mas a covardia não permitia que mostrassem a cara ou dissessem os seus nomes...

E saí à procura. Eu queria reformar, transformar o mundo tão amargo num espaço de esperança. Construir a primavera com os melhores olhos e tentar agir no sentido de cultivar a esperança nos meus iguais. Estudante de História da USP já era, por definição, vista como suspeita! Em jornal de esquerda então... cruz-credo! E lá ia eu trabalhar na gráfica que emitia o semanário EM TEMPO.

Durante alguns meses o trabalho foi elaborado na grande redação do jornal Diários Associados, na rua 7 de abril. Até maio de 1979 com a morte misteriosa do torturador-mor do regime, Sérgio Fleury. Morreu repentinamente , em Bertioga, no litoral paulista, bêbado, caindo de um barco.

Rápido o jornal publicou uma nova versão da música “jardineira”, de Orlando Silva. A letra começava assim: “Oh ditadura por que estás tão triste, mas o que foi que aconteceu? Foi o Fleury que caiu no barco, deu dois suspiros e depois morreu”... Achávamos isso lindo, afinal estávamos livres da ameaça constante do pior algoz daquele tempo.

E fomos imediatamente expulsos dali pela Polícia Federal.

E recomeçou a peregrinação pelas gráficas da cidade: quem nos aceitaria depois de tamanho deboche? Estávamos nos vingando, de forma infantil, quem sabe, mas que fazia um bem... Trabalhamos um dia apenas numa gráfica distante do centro, próxima à estrada que leva do sul do país . Fomos expulsos também e arrumamos onde trabalhar: rua dos italianos, no bairro judeu do Bom Retiro.

Cada dia de trabalho era uma vitória! Mas eu costumava deixar o trabalho no final da tarde sempre olhando para todos os lados, com aquele medo terrível de estar sendo perseguida por algum meganha. Tomava ônibus, sempre com um cuidado exemplar, e ia direto dar aulas de História do Brasil para um público adulto que entendia muito bem os meus propósitos.

Com 20 anos, o sonho e a vontade de mudanças iam acontecendo. O regime falia na sua própria podridão. Os meus antecessores lutaram heroicamente, foram presos, torturados ou mortos, outros “desapareciam” . E eu ia dando uma contribuição muito modesta, mas dentro do meu possível e até mesmo esporádica, mas nas aulas eu colocava o meu sangue, o meu coração, a essência da minha alma para a construção de um projeto de liberdade.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 18/11/2010
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