QUANDO A INSISTÊNCIA LEVA À DESCONFIANÇA - V

Venho, há quatro semanas, contando as peripécias da tentativa de compra de um apartamento na capital do meu estado. Se eu soubesse que os caminhos a trilhar iam me fazer administrar inúmeras dores de cabeça, eu nunca teria nem imaginado tal ideia. Mas, como “quem está na chuva é para se queimar” (já dizia o grande filósofo e ex-presidente do Clube Corinthians, Vicente Matheus), eu resolvi que, quando chegasse em casa, na quarta-feira, repassaria tudo para a patroa e concluiria a minha desistência.

Quarta-feira, pela manhã, acordei junto com o raiar do dia. A vista que se abriu ao meu redor – quando descortinei a vidraça da varanda do apartamento onde eu me encontrava, era deslumbrante: o mar, à minha frente, derramando seu sorriso em forma de ondas que corriam até as areias de sua praia, cumprimentava a todos que dele se serviam. Os casais matinais caminhavam na sua orla e recebiam, ao mesmo tempo, a brisa leve e as bênçãos de um sol que ainda se preparava para subir ao horizonte.

Não tive como não pensar: o que nós estamos fazendo com a natureza? Por que nós agredimos a quem apenas nos dá, de graça, o dom da vida? Somos seres injustos, disse, em voz baixa, para completar meu raciocínio (baixo porque não queria que o meu companheiro de apartamento me ouvisse falando sozinho. Ele já estava cismado com as minhas manias e os meus métodos e, sempre que eu entrava no apartamento, ele já ficava atento para os detalhes, tipo, como eu iria fazer as coisas, etc.).

Felizmente, ele não ouviu. Alegre, fui tomar meu banho. Quando terminei, desci para o desjejum no restaurante. Quando eu chego, quem é a primeira pessoa que me cumprimenta? Certo! A minha colega professora que, nas horas vagas, fazia as vezes de corretora.

-Bom dia, nobre colega! – disse ela, toda esvoaçante, parecendo uma linda gaivota a cercar a sua presa favorita. E completou: ontem a noite mesmo, eu já consegui melhores condições de pagamento de prestações para o “nosso” acordo comercial.

Gente, eu até que estava com um pouco de fome, mas quando ouvi a palavra “nosso acordo”, pode acreditar, passou aquela vontade de comer um mamãozinho ou uma fatia de melão.

- Calma, cara colega. Na verdade, nós não assumimos nenhum compromisso. Eu apenas confirmei o meu desejo de conseguir um imóvel aqui na capital, porém, como eu já havia dito antes à minha querida e agora saudosa corretora “Dora”, eu apenas estou me inteirando de como tudo funciona, como são as formas de pagamento, como se financia, etc. Portanto, professora, o compromisso aqui é somente com a educação que nos permeia. O resto, quem decide é, volto a repetir, a minha patroa.

Confesso que eu não queria ser assim tão ríspido na resposta, mas têm certas coisas que se faz necessário ser enérgico. E, mesmo não querendo, eu fui. Em compensação, não adiantou muito...

- Claro que eu entendo, professor. Não se preocupe, pois com o que o nobre colega está levando de informações, mais o que já postei na sua caixa de e-mails, com certeza, quando ela vir e ler, irá gostar muito de adquirir o imóvel. – arrematou ela como se eu não tivesse dito, frisado, argumentado, esclarecido, isto tudo, algumas dezenas de vezes.

Como eu não queria perder o restinho do apetite, apenas meneei a cabeça, concordando, e fui à busca do pedaço de mamão que estava me esperando.

O dia transcorreu sem maiores problemas, tirando os “casuais” encontros entre a minha pessoa e a professora-corretora. Em todas as vezes, ela dizia uma coisa, tipo: “sortudo”, “você, quando entra em Natal, no bairro da Candelária, não percebe como a vista é linda?”, “você viu como fica ‘bonitinho’ o apartamento que você vai ‘comprar’ quando ele está todo mobiliado e decorado?”, “você nem imagina o sufoco que foi conseguir melhores planos para você!” E assim por diante...

Ainda bem que o dia chegou ao seu final. E com ele, o término do seminário. Malas no carro, despedidas aqui e ali, de repente, quem eu encontro para se despedir de mim? Ela, claro, a professora-corretora! Dois beijinhos – um pra cá, outro prá lá e a advertência de que, quando chegasse à casa, mostrasse, logo, à patroa tudo o que ela estava mandando. Como eu não queria prolongar mais a despedida, concordei.

Quinta-feira. Acordei em casa, às seis da manhã. Liguei o celular e, passados, mais ou menos, dois minutos, dois bips. Ao olhar, uma mensagem. Abri e li. Nela, estava escrito: bom dia! Ligue-me até, no máximo, amanhã à noite. Novidades.

Rapaz, pense como eu fiquei abismado! Acho que ela não dorme. Mesmo assim, eu resolvi não ligar. Queria conversar, primeiro, com a patroa.

Assim, fui trabalhar. Na volta, mostrei, conversei, mostrei novamente. A patroa, por conseguinte, conversou com a minha filha. Contou tudo a respeito do imóvel. Minha filha achou pequeno. Diante disso, quando a minha cônjuge me repassou tudo, passei um e-mail recusando qualquer oferta, de forma irredutível, e disse que o problema era o tamanho do mesmo e, também, a falta de financiamento através de um órgão público.

Problema resolvido, fiquei esfuziante. Estava livre de ser perturbado, bombardeado, pressionado e mais outros “ados” quaisquer da vida.

Sexta-feira, meio dia. Chego do trabalho no momento que o telefone estava tocando. Atendi. Do outro lado da linha, adivinha quem era? Não, não era a professora-corretora. Era Dora! Sim, ela mesma. Estava de volta. Ouvi o que ela tinha para me dizer.

-Boa tarde, seu Raimundo. Estou te ligando para lhe perguntar se já tem uma resposta sobre a compra do imóvel.

Rapidamente, eu lhe expliquei tudo. Ela ouviu. Quando eu terminei ela disse:

- Se o problema é o tamanho, eu tenho dois com tamanhos maiores, financiamento público e em ótimas localizações. Espere, vou lhe mandar, por e-mail, com todos os detalhes...

Arre! Ia começar tudo de novo...




 
Obs. Imagem da internet


 
Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 28/11/2010
Reeditado em 20/03/2019
Código do texto: T2641627
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