UM ABNEGADO E SUA "BIBLIOTECA CIRCULANTE"

Se bem que todo o bem que nós fazemos,

É bem que volta em bens multiplicados,

O bem façamos pelo próprio bem.

Bem razão tem quem diz – e bem o cremos,

Que o bem que nos faz bem-aventurados

É o que fazemos sem olhar a quem.

[Do soneto “O Bem”, de Carlos A. Trezza]

Autor de uma ideia ‘sui generis’, muito original. De início, só vigorava em Fortaleza. Ele emprestava e distribuía livros, gratuitamente. Levava livros, a mancheia, jornais e revistas a asilos de idosos, escolas, hospitais, creches, presídios e favelas, até onde os pés dessem para ir. E ainda pagava o táxi com dinheiro do próprio bolso. Não tinha ajuda oficial, embora todos o aplaudissem de pé, tirando-lhe o chapéu. Em uma palavra, não havia outra que o definisse: o sujeito era um abnegado.

Eu disse “era”? Mas esperem aí... Um absurdo que cometo. O que é isso, minha gente? Disparate meu, quando utilizei, no parágrafo supra, os verbos todos no pretérito. Ora, como se as ações do Luís Cruz já fossem coisas do passado. Pois não são, não. As ações do Luís ainda continuam atualíssimas, e cada vez mais em vigor, há quarenta e três anos – ampliadas e renovadas, evidente.

Luís Cruz é um Dom Quixote, que se presta a fazer o bem “sem olhar a quem”. Leva uma vida laboriosa, com sua biblioteca sempre em tempos de safra, ininterruptamente. Ele tem por hábito levar livros e alegria a enfermos, idosos, crianças pobres e aos presidiários. Até gente pirada, nos manicômios, recebe material de leitura das mãos do Luís. Leva livros e congêneres, transporta brinquedos e até víveres às comunidades mais miseráveis. Enfim, o nosso idealista leva alegria às gentes simples.

A instituição do Luís chama-se BIBLIOTECA CIRCULANTE. Como está no nome, ela circula nos meios pobres e desvalidos, agora não mais apenas na Capital, porém – até, se querem saber – em longínquos sertões e serras cearenses. Hoje, por imitação da lídima ideia quixotesca do Luís, já existem órgãos laborando em emprestar livros.

Cruzes!... O Luís Cruz mete o pé no caminho, vai pelo areal às comunidades mais ermas e bota sorrisos em rostos de indigentes, velhos e crianças. Arranja-lhes, por meio de doações, presentinhos, roupas, calçados, brinquedos e trecos alimentícios. E não é homem rico. Se o fosse, só Deus o saberia, conforme se diz lá no Sermão da Montanha. Um simples funcionário da Universidade Federal do Ceará, que gasta do bolso para alimentar o fazer o bem.

Todos que o conhecem o apoiam, dão-lhe carona e transportam, sem ônus, os seus maiores amigos – os livros. Sem dúvida, um belo exemplar de pessoa, o Luís Cruz. Camarada solidário, alegre, sempre de riso aberto no rosto, e deveras folião. Uma pagodeira de Momo é com ele mesmo. Gosta de vestir-se de modo engraçado, colorido e estapafúrdio, mas somente quando vai ser jurado em programas de televisão. Uma ideia nobre e original o faz como destaque em Fortaleza e em todo o Estado.

Lá pelos “anos de chumbo”, recebendo lições de Letras na antiga Faculdade de Filosofia do Ceará, eu ia para o velho ‘campus’ de guerra do Benfica, justo onde fervilhavam as lutas políticas contra a então ditadura. Inventei de, aí, em um dos centros de cultura, onde ainda se ensina esta e aquela outra língua, ir estudar inglês para ficar mais perto do caldeirão. E virei comensal do extinto CEU, o ponto de encontro da estudantada, bem às barbas da Reitoria da UFC. A gente só pronunciava [sÉu], com o é aberto. Sei lá, acho que fosse Centro dos Estudantes Universitários.

Pois foi no CEU, pegando boia barata em bandejão inox, que conheci o Luís Cruz, o cara da BIBLIOTECA CIRCULANTE. Ele, funcionário da Reitoria, já por seus dons de altruísta e benfazejo do bem-comum, gozava da imunidade de pagamento das refeições, por sinal que eram uma bagatela. Rara era a vez que não me sentava à mesa do rapaz. Caras conhecidas se aglutinavam sempre. Então os encontros eram mesmo tiro e queda; a gente não errava no rumo.

Lembro de outro camarada que se punha sempre conosco, à nobre mesa do Luís. Caladão, pouco de comunicar-se. Foi o sujeito mais metódico que já vi neste orbe terráqueo. O cabrão estudava Comunicação Social, mas era muito caladão e esquisito. Ia sempre com o garfo e a faca, muito certeiros, em cada departamento da bandeja. Uma coisa de cada vez. Só levava à boca aquela garfada escolhida. Era assim que deglutia cada porção, glot, glot. Pensando bem, aquilo talvez fosse de etiqueta. Eu é que estava um xucro capiau. E duvido que, em casa, fosse aquele embaralhar as fivelas das coisas.

Mas deixemos o gajo das garfadas exatas, escolhidas a dedo. O que nos interessa é que o Luís Cruz, a quem conheci às voltas com uma bandeja inox, como eu, também, tirando lá a barriga da miséria, sempre em horários iguais, é e será um sujeito porreta, à moda baiana. Cabra de primeira que sustenta nas costas uma entidade sem fins lucrativos, e sem a ajuda de seu ninguém, no campo oficial, há elásticos quarenta e três anos. Para tipos assim eu tiro o chapéu e mostro a minha calva.

Fort., 02/11/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 02/12/2010
Reeditado em 02/12/2010
Código do texto: T2649365
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