VIDA DE ESTUDANTE
Na Pensão do Chiquinho, em BH – quando estudantes – moraram engenheiros, advogados, coronéis-pm, médicos... e quem não deu certo na vida, daí mal rabiscar crônicas. O Chiquinho era casado com a Nair e tiveram muitos filhos e filhas, mas nenhuma desavença em família. O que torna insólita a situação é que a Nair assinava Gontijo (não larga do pé), contra Cardoso (não tá nem aí) do Chiquinho. Após cinquenta anos de vida conjugal, um reparo só a esposa fazia ao marido: era ele – provocado – nunca ter aceito brigar com ela. Com certeza porque o 'parente' (como ele tratava até aos estranhos) fosse criatura de um plano espiritual superior, próximo à Entidade Maior do Bem!
Quando os conheci, ainda criança, eram proprietários de boa fazenda em terras e gados às margens do Rio São Francisco, num lugar chamado Campinho. Chegava-se lá atravessando capões de mato, vendo e ouvindo as traquinagens dos macacos guaribas. Menino da cidade quase sujei as calças de medo, tamanhas latomia e safadeza dos bichos! Anos mais tarde, para educar a filharada, o casal vendeu de porteiras fechadas a fazenda e montou uma pensão em Belo Horizonte. Por outro destes trotes da vida eu já conhecia o Rio de Janeiro e São Paulo, mas não a bela capital das Alterosas, distante uma centena e meia de quilômetros de Bom Despacho! Até que, como todos que buscam seu lugar sob o sol, um dia também lá cheguei para hospedar-me na Pensão do Chiquinho. Comigo tá sempre acontecendo coisa que não dá pra localizar no mapa!
Por falar em mapa, o Miguelzinho, também primo e antigo morador na capital mineira, enquanto numa mesa de bar fazíamos minha despedida da terra natal, garantiu ser mais fácil andar lá do que tomar biscoito de criança! Sob ação do alcool e com a desenvoltura verbal de todo Cardoso - longe de mim insinuar que sejamos mentirosos -, o parente traçou no ar o roteiro que eu deveria cumprir a pé, da rodoviária à pensão. “- BH não tem erro! É a Avenida Afonso Pena indo para um lado e a Avenida Amazonas vindo de outro! No cruzamento delas tem a Praça Sete, com o pirulito – uma pedrona pontuda, comprida pra cima! Rua que desce tem nome de estado: Bahia, Espírito Santo... Rua que sobe tem nome de índio: Tupis, Goitacazes... Cercando tudo, bem longe, passa a Avenida do Contorno. Cuidado, não atravessa ela não, ou você corre risco de ficar perdido!" Amigão (da onça, descobri sem muita tardança), o Miguel. Ao desembarcar na rodoviária vi que o centrão de BH era igual tabuleiro de xadrez. Em uma frase curtinha, condescendente leitor: Eu me perdi!
A Pensão ficava num sobrado da Avenida Augusto de Lima, contra-esquina com a Rua Padre Belchior (aquele reverendo aparentado meu) personagem da crônica 'Sete é conta de mentiroso' e dono da besta em que montava o então príncipe e futuro imperador D. Pedro, na hora do Grito! O cavalo branco do quadro que se vê no Museu do Ipiranga é fantasia do pintor Pedro Américo! Logo no quarteirão à esquerda está o Mercado Central, visto por mim como uma filial de Bombaim ou Calcutá – enfim, um daqueles lugares míticos de onde viajantes europeus traziam as tais especiarias. Três quarteirões e meio à direita e se chega ao Parque Municipal, que eu e outros sem grana freqüentávamos aos domingos. Dia que o Chiquinho dava folga para as cozinheiras e o de-comer na Pensão ficava na base do murici-murici-cada-um-pra-si...
Eu que sou péssimo de orientação já aprendera como andar por BH, quando certo dia o Chiquinho me entregou um envelope. Dentro havia a última das raras cartas que meu pai escreveu para mim! "– Lê com carinho, é do primo." Recomendou-me ele, conferindo o remetente. Feliz, o velho contava que eu fora chamado para trabalhar no Banco... Acho que todo mundo já conhece o final da estória!