Crônic’achatada

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Crônic’achatada

A modernidade fez de mim um sedentário em movimento. Não quero aqui discutir o relativismo do referencial Newtoniano nem entrar no cerne da questão levantada pelo homem que colocou a língua pra fora, com os cabelos assanhados, quiçá em função de uma descarga elétrica despejada sobre ele ao ter contato com um condutor energizado...

O problema – o meu problema – é que tenho viajado demais! Nos últimos seis meses, confesso que já devo ter dado a volta ao mundo em 80 dias!

Nas idas e vindas, as paisagens (estáticas?), todas elas, ricas em policromias que variavam do cinza das cinzas dos incêndios florestais ao verde característico da pujante vegetação banhada pelas chuvas, contrastavam com meu crescente e redondo bucho de um quase quarentão, finalmente nocauteado pelo tempo. A penugem me fugiu da cabeça... O noviço de outrora, agora é um quase barrigudo e um quase calvo, careca, pouca telha, aeroporto de moscas – nome é o que não falta para as coisas feias inventadas e reinventadas pela natureza! O despertar diário tem se tornado um ultrajante martírio toda vez que olho, descendo ralo abaixo, aos montes, meus derradeiros cabelinhos... A dor nas costas é outro tormento, resquício da dureza da vida, agora transmutada em descalcificação – isso me faz lembrar hospital, horários de visitação, limitação do ir e vir (e o direito Constitucional de ir e vir, onde fica? Quero justiça e justiça já!)... Até nossos amores ficam diferentes. Por mais estranho que pareça, eles ficam cada vez mais jovens – pelo menos é o que queríamos.

O duro mesmo era ouvir da minha filha mais nova:

– Papai, como o senhor consegue ser magro e barrigudo! – ouvir isso era o fim da picada!

O meu diferencial, talvez, voltando ao tema careca, esteja no brilho da minha testa que, apesar de nunca ter recebido nenhum tratamento à base de lustra-móveis (juro pra você que nunca usei!), é de uma expressividade visual que confunde até a direção do movimento de plantas com elevada afinidade fototrópica.

Minha memória recente também foi afetada pelo tempo. Não conto mais a vida em anos, mas em minutos. Pra mim, tudo que se passou ontem tem o efeito de jornal velho – sei que existiu e que se relacionou a algo aparentemente importante, mas esquecido está. Mesmo assim, tentarei dar leves pinçadas, em preto e branco, de alguns fatos curiosos ocorridos na última viagem que fiz.

– Olhem! É uma vaquinha sozinha, coitada! – disse a moça que estava conosco, de carona.

– Ela se desgarrou da mãe. – respondeu minha esposa, solícita.

– Vamos voltar e pegar a bichinha!

– E fazer o que depois? Perguntar onde ela mora e deixá-la em casa? – respondi, sorrindo.

– Nossa, como você é chato! A bichinha está perdida, não está vendo?

A 100 km/h, ao olhar pelo retrovisor novamente, nenhum sinal havia da pobre quadrúpede órfã.

Minutos depois, já noutra cidadezinha, inicia-se uma chuva fina, mas constante. Minha esposa, atenta, percebe bichinhos voando que cruzam nosso caminho a todo instante:

– Interessante. Eles parecem voar em nossa direção. Ei, pare! Uma borboletinha. Ah, coitadinha! Ficou presa no limpador...

Parei. E lá se foi minha esposa socorrer a borboletinha amarela.

– A bichinha quebrou a asa e está com a perninha quebrada. (Borboleta tem perna? – pensei).

Delicadamente, o animalzinho foi colocado junto ao meio-fio da estrada. Instantes depois, quase que infinitamente melancólicos, a constatação:

– Ela morreu!

Viajamos alguns minutos no tom plúmbleo característico da morte e muito bem representado e em concerto com a tela celestial que nos brindava com um cinzento e pesado céu que nos acompanhava... (Em movimento?).

O dia na cidade para onde íamos não foi dos melhores. Problemas. Desacertos. Ao anoitecer, por volta das 23h, retornamos. Lá estavam os mesmos bichinhos, agora iluminados pelos faróis do carro, a nos perseguir:

– Eles parecem mesmo voar aproveitando a direção do vento – reitera minha esposa.

– Nossa! Eles ainda estão acordados a essa hora! – complementa nossa amiga, aparentemente assustada, lá do banco de trás.

– Aposto que os bichinhos, ao passarem por nós, devem estar se perguntando: ‘Esse povo não dorme não?!’

– Nossa, como você é chato!

Nijair Araújo Pinto

Juazeiro do Norte-CE, 14 de dezembro de 2011.

21h47min

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 14/12/2010
Reeditado em 15/12/2010
Código do texto: T2672256
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