Que droga, é Natal

Aterrorizado com o destino que eu teria se permanecesse em casa, telefonei para meus amigos, em ordem dos que eu mais gostaria de passar a noite. A resposta foi a mesma para todos eles: “Cara, hoje é Natal”, “Não posso sair hoje a noite”, “Vou passar a ceia com a minha família”. Após o ultimo amigo me negar abrigo, telefonei para os conhecidos, em ordem alfabética por que não importava mais. Alguns estavam depressivos, alguns tinham os mesmos planos de passar a noite com a família, alguns iriam para um motel com a nova namorada e enfim, não havia espaço para mim, um mero conhecido deles. Um homem precisa saber quando desistir, então após ligar para todas as meninas que me deixaram telefones em guardanapos e constatar que elas não faziam ideia de quem eu era, desisti e aceitei o meu destino: A ceia com minha família.

Quando eu era criança, a expectativa de ganhar presentes fazia com o que o dia demorasse muito à passar, com o tempo, reparando que o auge dos presentes era um par de meias que eu não usaria, o intervalo entre acordar e a ceia estava se tornando cada vez menor.

A campainha tocada três vezes seguidas anunciava a chegada da tia Porfiria, dizem que meu avô encontrou o nome dela em um livro de medicina, achou lindo o nome da doença e a batizou. Sua chegada me deixava um pouco doente também. Ela nem havia terminado de se admirar com meu crescimento, quando minha mãe chegou com meu irmão mais novo e a vó Leopolda na cadeira de rodas. Interessante reparar que todos estavam se abraçando e trocando desejos de felicidades natalinas, como se meses atrás não estivessem brigando por um pedacinho de terra sem valor na frente do caixão de meu avô.

“Preciso trocar a fralda.” avisa a vó Leopolda, com muita naturalidade. “Vou colocar o peru no forno, para ficar pronto na hora da ceia” comenta tia Porfiria que havia queimado os últimos 20 perus da ceia de Natal, pelo menos até onde eu lembro. “Eu te ajudo” falei rapidamente na intenção de livrar-me da sessão de troca de fraldão geriátrico. “Vamos ali no quartinho”, falou minha mãe que parecia ser a única que mantinha algum tipo de sentimentos para com a vó. Instantes após, tia Porfiria cochichava para mim: “ Não acredito que ele teve coragem de vir”, ela se referia ao Tio Augusto, que após tanta briga judicial foi quem ficou com o terreno inútil do meu avó, causando muito ressentimento. “Que bom que você veio!” exclamou com o tom mais falso do mundo minha mãe. “Feliz natal, felicidades!” disse cínica a tia Porfiria. Foram ambas cumprimentadas no mesmo tom. O Tio Augusto é um cara razoavelmente legal, o único problema é que ele nunca vinha sozinho, trouxe sua esposa Malvina, que estava muito gorda, e seus dois filhos, Junior e Fábio com nove e seis anos de idade respectivamente. Malvina apesar de ser bastante depressiva, acaba não incomodando muito quando tem algo pra ela comer, mas, as crianças já chegavam destruindo a casa.

Família reunida, peru mau temperado queimando no forno, cacos de vidros dos copos quebrados pelas crianças espreitando nossos pés pelas quinas, e o pior, o pior ainda está por vir.

Todos sentados à mesa, minha mãe resolve ler o mesmo texto sobre o menino Jesus que ela lê em todos os natais, dizem as lendas que a vó Leopolda lia para ela e que a Bisavó que eu nem imagino como se chamava, lia também. Meus ouvidos presenciavam naquele momento uma tortura secular, que se repetia cruelmente em todos os natais. Aquelas pessoas que não visitavam uma igreja a mais de quinze anos meditando e suspirando sobre o menino Jesus antes de comer peru. “São oitenta anos que eu escuto essa história, e ela ainda me emociona”, diz a vó, que talvez não se emocionaria tanto se estivesse com inicio de Alzheimer. “Vamos cantar noite feliz” diz alegremente tia Porfiria olhando fixamente para Malvina, que exibia sua costumeira expressão de velório.

Eu mexia a boca e fingia estar cantando, faço isto desde criança. Infelizmente para meus pobres ouvidos, os outros membros da família não conheciam a técnica, e o som fúnebre e desafinado produzido por suas gargantas consumia qualquer resquício de felicidade que podia haver existido nas redondezas.

“Tostou um pouco” - Disse tia Porfiria retirando um negro pedaço de carvão que se assemelhava ao peru que havia entrado no forno. “Todo ano você diz isso” comenta a vó Leopolda mostrando que apesar do Alzheimer ainda lembra de todas as coisas ruins que já aconteceram. Empurrei aquela gororoba horrorosa goela abaixo e, assim como todos, menti dizendo que estava bom. Esta mentira evita que tia Porfiria se ofenda, porém, garante que ano que vem deixem ela queimar mais uma pobre ave inocente. Com o estomago pesando e revirando, natal após natal, somos vítimas de nossas próprias mentiras.

A troca de presentes foi iniciada, para alegria das duas crianças que após derrubar o pinheirinho e quebrar a cabeça de José no presépio já estavam sem ter o que fazer. “Você não parece feliz” me diz a Vó Leopolda. “Não estou”, respondi. “E por que não? Hoje é Natal!” ela tentou me convencer que o simples fato de ser natal deveria me deixar contente. “É por isto mesmo que não estou feliz!” fui atacado por um momento raro de sinceridade “Odeio ver toda essa hipocrisia, durante o ano vocês se odeiam e hoje fingem ser uma família perfeita!”, “É?” responde ela sem poder acreditar no que ouvia. “É! Pra essa noite ser feliz, eu queria estar com algum amigo, algum conhecido ou até com um desconhecido no bar, não aqui!” talvez eu tenha sido muito severo com a velhinha.

“Escute aqui garoto” ela me disse, “Nossa tradição de Natal é fingir que somos felizes, fingir que somos uma família normal pelo menos uma vez por ano. Você tem o ano inteiro para amar, compartilhar emoções, ver seus amigos e ser feliz de verdade, mas hoje, hoje é Natal, e o seu lugar é aqui, junto com a sua família que te ama! Entendeu?”. Aproveitando o silêncio geral causado pela bronca, vó Leopolda presenteou-me pela vigésima vez, com um par de meias cor-de-rosa, que a principio ela sabe que não irei usar. Agradeci, sorri, e lhe desejei também um “Feliz Natal”.

=NuNuNO==

( Que acredita mais em Papai Noel do que em Noite Feliz )

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 19/12/2010
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