OCIAN E PRAIA GRANDE

Lá, como nas praias daqui, à noite, tudo igual: as ondas batem nas bordas do areal do mesmo jeito. De dia é que não prestei a mínima atenção aos detalhes da praia. O tempo era corrido, ficava à mercê das explanações do sindicalismo engajado e da sua antítese, o domínio dos pelegos sindicais.

À noite, no marco-zero, entre Praia Grande e Ocian, a gente ia tomar cervinhas geladas. E também, neste particular, tudo era igual, igual: garrafas nevadas por fora e o gelo, à hora da deglutição, era que vinha tinindo nos dentes de cada bebericador.

Lua, de verdade, parece que não havia, por lá, sobre aquelas duas cidades litorâneas. Não a vi, nenhuma vez. Também nem me dava ao luxo de olhar para os céus. Só o mulherio desfilando, no calçadão, às barbas da estátua do deus Netuno. Acho que era Netuno, um gajo bem no cimo de um muito alto pedestal; ele, um Buda imperioso, que mais se assemelhava a um daqueles tipos dos “anos de chumbo”.

A nossa cafua de hospedagem quedava-se em Ocian, cidade anexa à Praia Grande, com prefeitura em plena safra, e tudo o mais. Ali, em Ocian, refúgio manso e para não se botar defeito algum. Sede da colônia das modistas e costureiros, e sei lá que nome eles davam ao casarão. Sem sombra de dúvida, uma coisa assim, lembrando gente da costura. Devia ser isto mesmo.

Uma moça do clã dos cabeças-chatas, professora, toda cu-doce, ao saber que desembarcáramos do ônibus, em terra firme, e já com destino reservado, numa Kombi, à sede das costureiras, espocou um muxoxo e detonou, no ar: “– Merda, coisa mais pau! Logo nas costureiras!...”

O preconceito sempre andou agarrado aos homens; e uma mulher, lá do interior cearense, sendo de cidadezinha marruá e bastante égua, não iria fugir à norma. A pedantia vigora até nos montes de merda. Pois assim foi: enquanto durou o congresso, ela só resmungava. Ai, coisa e tal, por que ficamos hóspedes na colônia das costureiras?

Apenas ouvia falar, mas nunca vi de perto: por volta das horinhas da noite, assaltos e mais assaltos no areal das lonjuras da praia, verdadeiramente uma tira comprida de praia, em linha reta. Daí o seu nome: Praia Grande. Pedaço longo, que vai bater em Santos. E esta cidade só não é vista, à distância, por conta da diaba de uma ponta de morro entrante no Atlântico. Assaltos, sim, e às pampas. Também, quem mandava tantos casais se coçarem naquele mar de areal?

Nunca vi assalto nenhum, só me vinham dizer ao ouvido. Eu, muito ancho, deglutindo cervas e mandando desaforos para o cão. Uma vez, noite alta, telefonema da terra natal: o gajo do menino mais velho pegara paralisia facial. Ficou tempo demais na pescaria de vara e anzol, mas também jogando tarrafa, feito pescador de verdade. E aí o sol petrificou uma banda da cara do danisco do guri.

Na minha primeira ida, à Avenida dos Sindicatos, não arredei pé, de lá; fiquei feito múmia, dando todo apreço às querelas sindicais, políticas e jurídicas do movimento dos trabalhadores. Babaca, enquanto uns companheiros iam e vinham, andarilhos e pimpões.

Deixa está o jacaré, que da segunda vez... E fui. Fiz gazeta, gazeei uma tarde toda, às discussões, lá na sessão plenária. Pois então... No segundo ‘tour’, dois anos depois, em 89, desabei os quartos na cidade de Santos. Foi quando eu me dei numa praça ampla, após meu ônibus mergulhar numa enseada de um túnel.

Antes de desembarcar em Santos, conversa, papo saudável com uma professora que abarcava um monte de livros artesãos, tudo coisa bonita, ilustrada e rabiscada em tecidos. Primeira vez que vi aquela arrumação de criatividade, peças das mãos de uma molecada de bancos de escola. Vi e gostei pacas, e, para mim, os escolares da baixada santista estavam com a bola toda, depois de apreciar as obrinhas e elogiar a mestra, que não era de ser enjeitada.

Sem precisão nenhuma, que ainda havia e sobravam trocados no bolso, caí na boca de dragão de uma financeira, ali mesmo na pátria de Amando Fontes. Fisguei uma grana ínfima, num caixa eletrônico, e só não me dei pior, ainda, porque, de fato, não foi lá coisa de tanta monta.

Mas, vida de primeira, mesmo, ainda na minha primeira viagem, foi numa noitada, lá na extrema Ocian x Praia Grande. Ali, completa da silva, uma noite inteira de conversa de beira de copo. Muito papo jogado fora, tudo em torno de relembranças provincianas e as nossas revoluções estudantis. Alguns amigos de cá, da terrinha de Iracema, que foram ao congresso trabalhista e mais um camarada que eu não via, fazia anos, desde quando ele, após ser liberto de uma cana, levara uma carreira da ditadura.

Agora, o “subversivo” estava aboletado, em São Paulo, presidente de importante sindicato e, por cima da carne seca, acompanhado de bela secretária. O gajo fora meu colega de bancos estudantis, na verdade um líder, metido com invasão à faculdade e tudo; enfim, só acho que ele nunca deu nem levou tiros. Ordeiro, mas camarada que, pelos bofes que lhe conheci, não era de aguentar pau no ouvido.

Madrugada afora, sem ninguém pregar olhos... Conversa farta, farto arsenal de recordações. À mesa, com o casal amigo: um então vereador canhoto, hoje deputado, lá em Brasília, outro nosso comum camarada, professor, e não menos canhoto, e este marruá cronista, que subscreve a estas mal traçadas.

Da segunda vez, de volta para casa, bebi um porre de latinhas de cerveja por mais de doze horas, no aeroporto de Guarulhos, em companhia de um gajo do PC do B, cabra que vertia mais água que menino comedor de melancia. Nunca vi um cristão de Deus urinar com tanta gana. Parecia ter lá as partes dele eram furadas.

Viagens parecidas, mesmos fins, porém diferentes, na essência. Em uma delas fiquei lá, como um babaca, preso às reuniões formais das discussões infrutíferas; já na segunda ida, conheci a cidade do Peixe, cujo estádio, de longe, eu só divisei o vermelhão do terreno.

Cidades geminadas, Ocian e Praia Grande. Violência no calçadão e no areal da praia, mas bonitas que só o diacho. Se me der na telha, um dia vou lá, de novo, ver se o mar já anda menos poluído. Antes, no entanto, duvido que deixe de passar em outra cidadezinha, cá no topo de São Pulo, uma urbe cheia de vogais, que não vou dizer o nome.

Fort., 20/12/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 20/12/2010
Reeditado em 21/12/2010
Código do texto: T2682843
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