MALUCA MENINA VENENO

A escola teve papel fundamental na constituição do meu caráter. O que eu escolhi ser e o que eu desisti de ser se deve a maior parte das experiências que tive na escola. Eu era a mais velha de três irmãos e isso tinha implicações importantes.

A separação de meus pais culminou em inúmeras mudanças e fatalmente no atraso escolar. Eu e meus irmão éramos sempre os mais velhos da classe. A infância não era grande coisa com toda aquela pobreza mas nós gostávamos e queríamos ser mais velhos. Assim podíamos trabalhar e comprar o que a mãe não podia dar.

Ser mais velha na quarta série me fazia ir para a escola de saltos altos, usar batons vermelhos cintilantes. Daí para os apelidos era um pulo.

Meio-quilo-de-batom.

Menina veneno.

O segundo apelido ganhei por dançar musicas do Richie no recreio, na quinta série. Era o meu momento de brilhar. Eu conhecia bem a coreografia e a escola fazia rodinha para assistir. Mas a maravilha eram os alunos da oitava série fazendo fila para pedir meu autógrafo.

Demorei anos para entender a piada.

Em tempo de denúncia ao bullying me constrange dizer que eu era vitima e algoz em meus tempos de fundamental. Mas não havia como ser de outra forma. Éramos feios, magros, sem pai e não muito brilhantes. A escola não era nosso melhor habitat.

Só sobrevivemos àquela selva porque nos comportávamos como malucos. Aliás esse era o meu apelido na sétima série.

Maluca.

Eu e meus irmão reagíamos aos ataques cruéis daqueles que adolesciam conosco como ensandencidos. Estávamos nas brigas da porta da escola com pedras, paus ou tchacos, gritávamos e batíamos em tudo e em todos para demonstrar força e sermos reconhecidos. Era o que tínhamos.

Isso funcionou bem enquanto estivemos os três juntos. Sozinha e em outra escola tive que construir outras estratégias.

No começo do ensino médio estava tão deprimida que ninguém se aproximava. Era sempre o chororô na sala da orientação. Isso até a velha Norma briguenta reaparecer. Eu agredira um insignificante que passava tampinha no quadro para irritar a turma.

Me deram o ultimato. Eu teria que mudar.

Num ato de solidariedade e amor à profissão meu professor de biologia me indicou uma amiga psicanalista e isso de certa forma mudou os rumos de minha vida.

Procurei-a na semana seguinte. Se chamava Izabel. Um menina de 26 anos, miúda e amorosa me ensinou que eu poderia arrancar a minha dor, olhá-la profundamente e guardá-la onde ela não doesse mais. Eu, que usava todo o salário de babá para pagar as sessões, deixei de querer parecer adulta e me tornei adulta. Ela me fez entender que o céu era o limite. Eu poderia ser o que escolhesse ser. Escolhi ser pedagoga.

Voltei para dentro da escola para me redimir e me curar de toda violência que impingi e sofri. Dos tempos de "Maluca" trago uma certeza. Evito usar a força para me proteger e acredito que como professora, a qualquer momento, posso estar dando aquela palavra que mudará a vida de meus alunos.

É como lançar sementes.

Norma de Souza Lopes