Margens do amor

No carro...

Ele confessou que tentava evitar o encontro pois sentiu-se inseguro em se meter numa situação familiar já consolidada: ele não queria acabar com o casamento de ninguém. Ao ouvir suas palavras ela tentou dissuadir, rindo, feliz. Como você pode mentir assim? Você diz que acredita no que os outros dizem e eu não acredito em nada do que me diz. Aquilo a excitara enormemente. Como é bom isso! Como é estranho! Seu corpo parecia ser tocado por cada palavra dele. Ao volante do carro, ela tinha pequenos surtos de ausência que provocavam freiadas bruscas. Alguns instantes de silêncio serviam para respirar um pouco, para buscar alguma lucidez. Mas o desejo é corpo. Um sorriso parecia tatuado no seu rosto - ele, numa posição muito privilegiada podia vê-la, mas não se demorava muito de propósito, captava os instantes que ela lhe entregava daquele prazer de estar sendo desejada. Engarrafamento. Não dava muito pra criar confusões mais sérias pois se gostavam e estavam presos ali. Mas ensaiavam alguns passos do que seria uma discussão, mas que não ensejava numa briga. Juraram amizade eterna. Agora poderiam brigar? Ela se declara impossível. Se diz intempestiva, desastrada, impulsiva demais: eu primeiro brigo pra depois pensar e muitas vezes foi precipitado. Conta quando comprara um presente de aniversário pra uma amiga e que a empregada levou pra professora de um de seus filhos. Ele olhava aquelas manifestações que quase parecia um pedido de socorro: cuida de mim não me desejando assim! Quase que podia ouvi-la dizendo. Tudo seria coerente se amor fosse construído como se faz um sistema filosófico. Mas o amor é o amor; e já é assim há séculos. Por isso não adiantava ela tentar fazer parecer que tinha o controle da situação quando sua boca declara que já não estava tão presa assim às coisas "certinhas", aos padrões de civilidade social da família burguesa, a essa moral cara e banal. Mas ela trocaria isto por quê? O que seria o preço do conforto de uma casa bonita, piscina, carros, onde os filhos podiam viver felizes sob os cuidados de uma babá? O quê poderia ser melhor que as reuniões com outros casais de amigos onde podiam desfrutar dos risos vodkos temperados com ousadias de olhares sedutores, comuns às pessoas nestes ambientes dos quintais de churrascos familiares? Ela estava questionada por seu próprio desejo de liberdade. E isso era paradoxal. Como ser livre pra viver outro amor? Como ser livre e amar? Isso a colocava em movimento. Idealizava uma vida em que pudesse viajar muito. Queria arranjar um emprego que lhe desse segurança e dinheiro para fazer estas e outras coisas que lhe caíam à imaginação como uma deliciosa caipivódica de lima da persia. Eu havia pensado em ficar com você. Cheguei bem perto desta decisão. Até arquitetei como poderia ser: já que não seria a primeira traição, por que não? Mas há um estranhamento que eu não consigo entender. O desejo é mesmo estranho, disse ele. Mas eu penso que seja outra coisa. Eu não estou perto de você. Toca o telefone. Era o marido. Questiona se ela esta acompanhada. Ela diz que não (mas ele já sabia). O marido quer dar um flagrante. (continuo?)