O abandono

Declaro solenimente que escrevi a verdade, nada mais que a verdade sobre "JCS neto" em o abandono. Contudo sendo narradora onipresente e outrora jornalista honorária dos fatos transcorridos, detalhei minuciosamente cada sentimento da ação, dramatizando cada "lágrima de sangue que foi derramada. " E você leitor será o júri que sentenciará como vítima ou vilão da história, se houve culpado ou inocente. Boa leitura e bom julgamento.

O abandono

O pai Dulce sempre foi cômico e nunca regulou bem da cabeça. Foi um pai ausente e quando a esposa lembrava-lhe do inferno ao qual ambos acreditavam que ele iria quando morresse, ele a espancava com terríveis ameaças de morte.

Cão que ladra não morde, contudo foi apavorante quando um condenado ao inferno pedia ao diabo coragem para assassinar a maldita mulher, seus indesejáveis filhos e a se mesmo. Dulce pedia a Deus para morrer dormindo, não queria que um machado cortasse a sua cabeça ou uma faca afiada picasse seu corpo enquanto despedia do mundo. Sentia uma faca grande da cozinha penetrando seu peito sem dor nem piedade.

Com estas cenas de ameaças e pancadaria, tinha vontade de fugir de casa. Contudo sua covardia não permitiu tal coisa. Com a braveza estampada nos olhos da mãe, a menina estava convencida de que não seria perdoada quando fosse capturada. Dulce se sentia como uma idiota que mal conhecia os limites da fazenda e sabia que não iria longe. Apesar de não conhecer ninguém, todo o sudoeste da Bahia conhecia os filhos de Joaquim e dona Luiza. As brigas percorriam todo o sertão e os deixavam “famosos”. Ambos tinham pais muito populares. E logo a criança seria devolvida a família, então nos seus pesadelos levava uma surra da mãe tão grande que ficava paraplégica.

“Você nunca mais vai fugir para deixar meu nome na lama!

Nunca mais vai arrastar minha cara no chão com essa malcriação!

Os vizinhos nunca mais vão dizer que não cuido bem dos meus filhos”!

Então a castigava cruelmente por ter que cuidar de uma aleijada. Seus tapas estalam na cara de Dulce jogando na cama de vara e colchão de palha.

Maior que ser mortalmente ferida pelo descontrole do pai que poderia guiar uma ferramenta e lhe fazer picadinhos, era a cara assustadora da mãe. Dessa forma tinha um pai como um mostro e fugia dele e andava sempre tentando agradar a mãe. Rejeitou o colo e as historias engraçadas que o pai contava anteriormente e fazia com que desse gargalhadas.

Sem o carinho do público para aplaudir suas palhaçadas, sua satisfação em ser cômico se transformou em raiva. A esposa influenciara os filhos a lhe rejeitarem. Já que perdeu o respeito e atenção dos filhos, desejou morrer levando toda a família com ele.

Convivendo com um mostro, Dulce sentia um medo incalculável de ser morta por ele. E quando sua mãe viajou decidida a separar do marido, deixando os filhos menores sozinhos com ele, Dulce ficou tão apavorada que a morte parecia inevitável. Não queria morrer daquela maneira.

_Porque Deus não me leva num piscar de olhos sem que eu sofresse tanto nessa passagem? Por que minha mãe tinha que nos abandonar? Por que meu irmão parece não se importar com um machado debaixo da cama e uma foice detrás da porta? Por que essa tortura não passa?

Como o pai não lhe matou no primeiro dia, esperava que o massacre seria a qualquer momento. Como o assassinato não acontecia, ficava cada vez mais apreensiva.

Para impedir a partida da esposa, Joaquim confiscou os documentos, porém ele não sabia que a mulher estava com a certidão de casamento original e o que estava em seu poder era apenas uma xérox. Crente que impediria o abandono, ele descontrolou-se ao ser surpreendido. Como as pessoas deteve-o de impedir que o ônibus partisse da rodoviária, ele foi pra casa de uma irmã que também era crente e esteve no culto que determinou a partida de dona Luiza. Como não fazia nada sem confirmação da palavra de Deus, a mulher ia a igreja antes de decidir qualquer coisa. Foi então a maior frustração do “Quinca”.

_ Imã Luiza! A irmã Luiza não vai voltar não. Se ela voltar, vai se transformar numa estátua de sal. Deus foi bem claro. Vai! Abandone tudo e não olhe pra traz!

_ Mas que diabo de igreja é essa que manda uma mulher abandonar o marido e os filhos e caí no mundo sem olhar pra traz?

Joaquim repetiu isso por meses com muita revolta.

_ Sua mãe? Vocês não tem mais mãe. Foi ouvir o cooperador da igreja e abandonou todo mundo. Foi na conversa dos crente e largou tudo. Que Deus é esse para dar uma ordem dessa?

Um cavalo que estava amarrado no poste da cerca e preso numa charrete é testemunha das agressões verbais que sucedeu na fazenda Pedra Brilhante. O homem usava de tudo para assustar os pequenos que corriam para não serem atingidos por algo que era lançado para cima. Quebrou a casa inteira empurrando os móveis, atirando pratos de louça, quebrando o telhado com um pedaço de madeira e até uma enxada cega que martelava a charrete antes de atirar em direção a casa nova e arrancar a janela, ao mesmo tempo que o cavalho fazia de conta que não estava presente para não levar umas chicotadas.

Quando achou que havia quebrado o bastante, Joaquim saiu estrada afora feito um dragão soltando fogo pelas ventas. Sua raiva não era com os filhos, por isso como única mulher da casa Dulce pôde recolher os objetos espatifados e sobreviveu para contar a história.

Mais tarde chegou a responsável pelas visitas e distribuição de donativos e esposa do cooperador que explicou as palavras da bíblia. Sorte a dela que o dono da casa estava ausente, senão teria levado uma carreira naquela noite. Quando Dulce informou o que ocorreu, a mulher incrédula riu da garota demostrando desprezo.

No dia seguinte, a garota foi a cidade telefonar à irmã mais velha e recebeu uma bronca.

_ Pare de drama! O que mãe não precisa é de preensão para voltar.

_ Mas você não disse que se acontecesse alguma coisa eu ligasse pra você?

_ Disse. Mas alguma coisa importante. Não essa tempestade em copo d'água. Eu estive ai, lembra? Vi as coisas pavorosas que o velho fez, mas não precisa ter medo.

Desligou o telefone lembrando da noite que o pai quebrou o telhado da casa velha enquanto Dulce, os irmãos e os sobrinhos corriam á beira do terreiro para cagar de medo. E quando percebiam o que o velho surdo caminhava em direção a casa recém-construída para velar o sono deles, voltavam correndo pra casa fingir que estavam dormindo. Tudo recomeçava depois que o pai dos apavorados voltava a quebração de coisas.

Dulce descobriu que o mundo não queria saber de nada que ela tivesse para contar.

Sentiu como uma ovelha indo para o matadouro e se essa era a vontade de Deus, ia aceitar. Com o plano de abandono fracassando, sua mãe voltou pra casa e seu pai ficou muito feliz por isso. Depois recomeçaram as brigas violentas.