O pianista

Eu entendi o que os meus pais sonhavam quando eu fiz 5 anos. Resolveram me dar um piano novinho em folha. Um Schartzmann! E eu me pus a pensar no quanto se economizou, quantos projetos deixaram de se realizados para isso, no quanto se sonhou, quantos lugares interessantes deixaram de ser visitados para esse presente. Um presente caríssimo, de luxo para aquele início dos anos 60!

Por mais que hoje eu reconheça o esforço, as economias, o deixar para depois uma viagem, por exemplo, a minha ignorância foi bem maior. Ainda pequena, de pouca visão, o que eu tinha mesmo era medo daquele instrumento. Mas muuuuito medo. Medo das professoras, das partituras, da hora que tinha que me posicionar e tocar. Era o medo da decepção porque as expectativas eram imensas. Os meus pais tinham CERTEZA de que eu seria uma notável pianista, para o seu deleite e recompensa por tantos anos de esforço. E eu não tinha noção do que fazer com aquela expectativa, com aquele silêncio, com aquele olhar que se preparava para brilhar e o brilho não saiu nunca. E um dia, de olhos arregalados e esperançados, o meu pai me falou que eu seria como o Pedrinho Mattar. E eu nem imaginava quem era o Pedrinho!

Eu precisei de algumas décadas para descobrir um talento infinito, uma exuberância em gentileza, simpatia e respeito para com o seu público. Descobri casualmente esse homem extraordinário na Rede Vida há muitos anos na hora em que São Paulo mais me faz falta: sábado à noite. Essa é a hora que São Paulo é mais paulista, o forno à lenha está mas abarrotado de pizzas, os bares, restaurantes, teatros, cinemas e outras casas de espetáculos cheiram a vida completa. Em outras palavras, depois de uma semana invariavelmente dura, chega a hora do encontro, das festas, dos abraços, da atenção à cultura e suas várias manifestações. E então eu descobri o Pedrinho: um encontro com um passado que não fiz, um sonho que se desfez no tempo. E eu não tinha mais tempo para reformular aquela época perdida no desconhecimento, na decepção que provoquei. O Pedrinho passou a ser uma tentativa de encontro com uma São Paulo poética e de energia sem limites. E também uma vã tentativa de reencontrar o meu pai. Ele passou a representar uma explosão de cores, memórias, respeito ao passado, aos grandes nomes da cultura e a tudo o que me faz remeter a uma só palavra: felicidade. Impossível não haver emoção ao ouvir o Brasileirinho, o Tico-tico no Fubá, a Aquarela do Brasil ou seja lá o que for. Ouvir o Pedrinho tocar o extraordinário “Singing in the rain” é ver o Gene Kelly se esbaldar na dança mais comovente e memorável do cinema. E isso me faz recordar o meu filho ainda pequeno, quando fomos assistir esse filme. Silenciosamente ele também se encantou. Só foi acontecer a primeira chuva que o pequeno Vinícius pegou o guarda-chuva e foi para o jardim e lá ficou a dançar e a levantar uma perna e a outra, compassadamente feliz, se vendo como Gene Kelly. E hoje a minha grande frustração é não ter ido além, não ter compreendido que a música bem tocada nos aproxima dos anjos. Quando vou a São Paulo procuro e compro os discos do Pedrinho, mesmo que sejam de vinil. Passo por onde ele morou, por onde estudou. E fica aqui registrado o grande pedido de desculpas ao meu pai, que se frustrou porque a filha não sabia ou não entendeu o quanto a vida tem de magia e de encantamento.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 14/02/2011
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