Causos de Família (Vovô Juca)

Meu avô tem 93 anos e é “o” mais casca grossa que a razão permite ser. Quando ele tinha 12 anos o pai dele sentou-se à mesa de almoço, assim num dia qualquer do meio da semana, e decidiu o destino de todos os seus onze filhos. Deu uma olhada pra cada um, analisou e soltou a sentença, “você vai ser enfermeira, você engenheiro, você advogado, você farmacêutico...” e no outro dia botou todo mundo pra fora de casa. Cada um seguiu para um internato diferente, num tempo onde não existia celular, telefone era uma novidade estrangeira, as viagens demoravam dias e amor de pai era igual amor de patrão. Meu avô tinha doze anos e a missão de se formar médico quando chegou a Vitória. Alguns anos depois ele descobriu seu primeiro câncer. Fico imaginando como era o tratamento de câncer de intestino lá pra 1940, certa feita ele me disse que boa parte dele tinha ficado pra trás. Outra vez ele estava criticando esses programas para conscientização da população contra a dengue, quando argumentei que isso ajudava no combate a doença ele me respondeu que antigamente “existia” malária e ninguém fazia esse estardalhaço todo, ele mesmo perdeu as contas de quantas vezes pegou malaria. Ao se formar voltou pra nossa região e foi trabalhar, o que só piorou o gênio dele. Naquele tempo o pessoal achava que médico trazia doença e em alguns lugares ele era recebido à bala. Então ele, que já não era muito gente boa, teve que se armar pra se defender e ficar autoritário pra poder trabalhar e ser respeitado. Alem disso, como acontece com todo médico, ver doença dos outros, morte ou acidente era coisa comum, leviana, rotineira...

É com esse avô que eu almoço todo sábado, todo sábado ele me xinga porque eu cheguei no horário errado, todo sábado ele fala que eu devia estudar pra ser médico, todo sábado ele fala que o mundo esta caminhando para o fim. Todo sábado eu chego atrasado, falo com ele que eu estudo tecnologia, e defendo o mundo de hoje. É nosso roteiro dos sábados, e por ele não escutar nada, aos berros nos comunicamos: “ o feijão de hoje ta ótimo vô... ein?.. O FEIJÃO DE HOJE TÁ ÓTIMO ...que? ...O FEIJÃO TA MUITO BOM!!!... não fui eu que fiz o feijão...”. Meu avô é figura, sempre tem uma tirada. Parece que aproveita da surdez para te prender totalmente a atenção, daí ele sacaneia: “que peixe gostoso! Aonde o senhor comprou?... Hã?.. QUE PEIXE BOM, AONDE O SENHOR COMPROU?... não estou escutando... AONDE O SENHOR COMPROU ESSE PEIXE!!?... na peixaria...”

Hahaha, cada um tem seu jeito de ser, quem quiser entender que entenda, e tem gente que não vai mudar nunca, ainda mais meu avô, ele já viveu um pouco de tudo, trabalhou numa tenda de doentes de malaria no meio do nada chegando a atender 200 a 300 pacientes que não aguentavam nem se levantar das camas. Quando tinha uns 50 anos ele encontrou outro câncer no intestino, isso foi na década de 70! Depois disso ele ficou viúvo, bateu um fusca a quase 100 km/h, encontrou uma onça no seu quintal, enfrentou um bandido armado, etc... etc...