Do alto

Já faz tempo que o pôr do sol avermelhou os céus, que estão imersos num breu pesado, sufocante. Desperto assustado, tropeço em móveis que aparentam ter-se movido com o correr da noite, algo vai ao chão e se parte em milhares partículas, que refletem a única luz que adentra o ambiente, proveniente da iluminação da cidade, que se afunila pela minha janela. Rumo cambaleante até aquele quadrado em que a escuridão parece mera penumbra; quanto mais me aproximo, mais me torno ciente da cálida brisa noturna que voa recinto adentro, alcanço o vão da janela, e nele me apoio. Antes de conseguir fazer qualquer outra coisa, sinto a aspereza em meu peito quando respiro, parece areia, e não ar, que preenche meus pulmões, a tosse vem logo em seguida. Ela é seca, som de cachorro engasgando, me dobro sobre meu abdômen, meu estômago é uma ode à dor, o peito arde, como se uma lixa fosse esfregada, repetidamente nele, o ar, expelido violentamente queima minha garganta, meu cérebro parece implodir. O processo se repete uma, duas, na terceira vez, sinto o calor do meu sangue numa mão, e seu sabor metálico na boca; estendo a palma manchada de rubro escuro para o vazio do outro lado da janela, observo a escassa luz da lua brilhar naquela poça vermelha que detinha em minha destra. Limpo a mão displicentemente na calça, e me dirijo à cozinha.

Com passos muito mais acurados, chego ao cômodo lajotado, o chão é frio sob meus pés descalços, apanho em cima da mesa, uma garrafa quase cheia, de uísque vagabundo, e volto a me recostar na já citada janela. Me apoio no vão com um cotovelo, a cabeça na palma da mão, na outra, a garrafa. Levo o gargalo lentamente até a boca que aguarda desejosa, lambo os lábios, saboreio o momento com papável ansiedade. Toco, com o lábio inferior, o doce vidro, apenas um leve toque, que me faz lembrar aquele beijo de canto de boca, quando ainda não se sabe se a garota lhe quer, que semeia na mente expectativas e desejos, em seguida emborco ferozmente a garrafa. O que tossir fez, a bebida faz em sentido oposto, transformando meu corpo num caleidoscópio de dor, pelas três vezes que tossi, três goles dei. A agonia vai se dissipando, enquanto observo uma ou outra pessoa vaguear pelas ruas negras, vejo bêbados, putas, bandidos, gente de bem, policiais; um cachorro late, uma mulher grita, um soco ecoa. Quando vejo todas estas criaturas transitando, só uma palavra me brota na mente: escória. Bando de desprezíveis, cada qual cerrado em seu próprio mundinho, o pesar e sofrimentos alheio é meramente isso, alheio. Coisas egoístas elas são, se dizem amorosas, altruístas, preocupadas, quanto são mentirosas, indiferentes; a cada gole aumenta minha ira, e a dor a segue em compasso.

Lembro-me de um tempo, há muito perdido, em que me preocupava com eles, buscava seu amor, seu carinho, fazia o que podia, e o que não me era possível, para fazer de alguém, por ínfimo momento que fosse, feliz. Tentava fazer com que percebessem o quanto esta troca, esta comunhão com os demais, engrandece o homem, alimenta o espírito, e cada vez que me feriam, ou troçavam do meu tentar, enganava a mim mesmo, dizendo na frente dum espelho, embaçado por lágrimas desobedientes, que agia certo, e isso era suficiente. Neste tempo, me julgava capaz de suportar tudo que fosse lançado contra mim, de abraçar o mundo com braços curtos, fazer da vida que não era minha, melhor, tomando problemas que não eram meus em minhas asas; e como uma vela que se queima até o fim, foi-se esta ilusão. Para cada boa coisa que fazia, em prol de outra pessoa, duas ruins me faziam, para cada dor que apaziguava, as minhas cresciam, cada afago um tapa, cada amor uma desilusão, para cada agressão, uma nova garrafa. Simplesmente cansei, desisti, gente podre, povo pútrido, mentes sujas, criaturas odiosas, raça mesquinha. Todo amor que lhes dediquei, tornou-se ódio, os repudio tremendamente, quando digo todos, é a todos que me refiro, sem qualquer exceção.

A garrafa quase vazia, uma súbita vertigem lancinante se manifesta, cambaleio a esmo, numa dança trôpega, quase caio no precipício entre dois colossos de concreto. Me encontro debruçado na janela, encaro o asfalto infinitos metros abaixo, sigo com os olhos a garrafa imprudente que escapou de meus dedos insensíveis, que inexplicavelmente percorre esta impensável distância. Ela espatifa-se no chão sem vida, pedacinhos reluzentes de vidro se espalham como bailarinas descoordenadas em todas as direções. Meus braços balançam a esmo, como os de um fantoche sem mão que os controle, penso em me deixar cair, seguir a garrafa, amiga abrasiva, até a calçada que me convida para um alívio rápido e definitivo, quase vou, mas um pensamento me impede de fazê-lo.

Se cair, meu ódio morre comigo.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 23/02/2011
Código do texto: T2809094
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