Quem culpar?

Largado na cama, a cabeça repousando sobre as mãos com dedos entrelaçados, miro o teto com olhar retardado, sonhador, para mim, são sinônimos. Um lençol fino cobre minhas pernas e minha nudez, pelo peito nu, sinto escorrer languidamente um suor preguiçoso. A madrugada é quente, abafada, me sinto numa estufa, ainda que a janela escancarada, tal quais as pernas de uma recém remunerada meretriz, permita que entre uma corrente de ar úmido que carrega consigo, para dentro do quarto, algum refresco e inconvenientes insetos. Como que em protesto à comparação ingrata que fiz a pouco, a mulher que repousa ao meu lado resmunga e se remexe, parando um pouco mais perto de mim; afasto-me em igual medida. Agarro o copo que repousa em meu criado mudo, engulo o que resta nele, saio lentamente da cama a fim de apanhar a garrafa que me encara desdenhosamente duma mesa a dois passos de distância, me apodero dela, penso que é a segunda vez que trato algo com esta possessividade esta noite, e completo o copo. Movo-me o mais silenciosamente que consigo, ainda que não supere a mudez da noite, a moça não desperta, ótimo, não acho que teria paciência para ela agora. Observo o líquido cor de caramelo, pelo menos parece na penumbra, criada pela luz que a lua, impertinente, manda janela adentro, passar de um recipiente para outro, aprecio o momento. Dou um bom gole, enquanto, com o canto dos olhos, vejo a dama, serei irônico e a chamarei assim, solta um leve gemido, se espreguiça como gata manhosa, e permanece perseguindo coelhinhos em seus sonhos. Com o copo numa mão, e a outra na cintura, parece um projeto de bule humano, sinto um lampejo do desejo que me fez mentir a ela e trazê-la até meus aposentos; uma parte de mim resolve apontar para as estrelas. Ainda em riste, sento-me na cadeira que está ao meu lado, o material do qual ela é feita pinica irritantemente minha pele descoberta, continuo a encarar a moça, com o mesmo olhar com o qual encarava o teto, e com o mesmo afeto. Enquanto bebo, penso se a acordo, me declarando vítima da luxúria, e torno a beber.

Deparo-me com um espelho, e nele, um esboço em preto e cinza do que seria eu, viro o rosto para o lado, e vejo a silhueta dela perdida em minha cama. Meu olhar vaga do espelho para o leito, do leito para o espelho, enquanto vejo duas sombras do que seriam seres humanos, tento imaginar tudo que acontecera em nossas fúteis vidas para que acabássemos aqui, um ao lado do outro, tão próximos, ainda que nada realmente dividamos. Não chego à conclusão alguma, a mente turva pela bebida amarga que conforta, e pelo desejo saciado causam uma deliciosa sonolência, meu raciocínio por sua vez, é prejudicado. De uma hora para outra, ou pelo menos o parece, como constantemente acontece quando nosso pensar encontra-se submerso em álcool, meus devaneios tomam um novo rumo, deveras inusitado. Passo a ponderar sobre o quanto a vida influi naquilo que somos, e quanto é culpa nossa. A resposta é fácil, nós nos criamos, colocar tal responsabilidade em mãos divinas, destino, outras criaturas humanas ou nas peças que a vida nos prega, é pura hipocrisia.

Como que para me ajudar a consolidar este pensamento, noto uma aranha, que se arrasta pelo lençol, em direção à minha consorte pela noite. Quase posso ouvir as patas dela roçando o pano, parece-me que para um animal irracional ela tem um objetivo claro: sair do lençol para cortar, com suas asquerosas patinhas a pele macia da minha temporária mulher. O aracnídeo se move com sádica lentidão, como se quisesse apreciar cada momento, cada milímetro que percorre, exultando com a excitação do que esta por vir. Ao mesmo tempo em que reenchia o copo, sorri, e considerei os sentimentos da aranha, irmãos dos meus, quando vi a moça, passei a seduzi-la e a trouxe para cá. Voltando àquele pensamento, de quem culpar pelo que somos, fica mais claro agora, que somente a nós mesmos. Conheço o tipo de aranha que rasteja próxima à garota, é tão venenosa quanto ela, o suficiente para matar, então algo me vem à mente. Se permito que a aranha a morda, poderia dizer que foi Deus quem arquitetou aquele encontro, evadindo-me da culpa? Ou que caso, após a mordida, me livrasse da aranha, despertasse a moça, a tomasse com uma paixão violenta, para em seguida permitir que a garota se fosse, desavisada, poderia culpar o destino, que a lançou em mãos mais frias e assassinas que as da aranha? Se a salvasse do perigo iminente, seria eu instrumento do cosmos, ou apenas um homem que decidiu gostar menos da aranha do que da mulher? Sinceramente, delegar a culpa para algo maior que si mesmo, é meramente instrumento de fuga.

A bebida acabou, no mesmo instante em que a primeira para repousa sobre a tez morena, deposito o copo e a garrafa na mesa, com um suspiro, levanto. Caminho próximo da cama, vejo a aranha ensaiando seus primeiros passos fora do lençol, já quase pela metade, três patinhas buscando apoio na carne que há pouco me serviu, enquanto tranco a porto e rumo à cozinha; deve ter algo lá para beber.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 25/02/2011
Código do texto: T2813790
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