Um caderno

Uma vez ganhei um caderno, centenas de paginazinhas vazias, completamente alvas, aos meus pequenos olhos, elas clamavam por preenchimento. Ainda era pequeno, sonhos torrenciavam meu viver, eram tantos deles, era incapaz de ater-me a apenas um. Não era somente a quantidade alarmante deles, assombrosa poderia-se dizer, que fazia com que de mim eles se evadissem, mas sua impressionante capacidade de metamorfose. Vez ou outra, cravava unhas e dentes num deles, num abraço mortal, aracnídeo, logo pela manhã. Então, aquilo que na alvorada era belo, pelo crepúsculo, tornava-se hediondo, ou seja, por tantos que eram não podia segurá-los, e quando, por ventura, um em minhas palmas repousava, algo diferente se tornava. Mas aquilo que realmente me corroía, não era minha notória incapacidade de retê-los, mas deles não me recordar, de detalhe que fosse, daquilo que me fugia. Assaz sofredor era eu, tantos sonhos, desejos, aspirações, vagando no vácuo, a dois dedos do meu alcance. Tentei gravá-los com palavras, rabiscando com rombudo grafite, papel riscado de linhas, tudo em vão. Minha caligrafira era risória, mal de anos poucos, e meu escrever, em nível algum refletia meu pensar, outro malefeito de pequena idade. A frustração que rastejava em meu corpo, multipicava-se, alavancava-se ao infinito; era um infante sofredor, sentia-me preso numa espiral maldosa, da qual o passe de saída, cruzava meu olhar mais vezes do que poderia contar. Mas quando no cúmulo do desespero encontrava-me, a salvação, tinha ganho meu caderno.

Nele registrava, com palpável orgulho, com ilustrações que ninguém com mais de 3.650 dias de vida seria capaz de compreender, todo aquele dilúvio de sonhos. Como ficavam belos, com traços tortos e cores erráticas, coloridos com caixas de giz de cera, bravos e destemidos soldados da coloração, gostei. Era maravilhoso, naquele punhado de páginas, todos os meus sonhos, gravados para sempre! Não havia dia em que não me alimentasse, tomasse água, e mirasse todas, todas as ilustrações daquele caderninho. Sorvia completamente cada detalhezinho, sugava de volta toda felicidade que sentia, e a transmitia, através de um traçado ilógico, naquelas folhas. Era uma combinação perfeita, as folhas imploravam para que fossem rabiscadas, dotadas de sentido, e eu sentia uma urgência dolorosa, de atender àquelas preces. E assim, dia após dia, fazia. Era delicioso, a cada obra terminada, sentava ereto, segurava com as duas mãos, já tão coloridas quanto minha arte, o caderno, e o afastava o máximo que meus braços permitiam, com olhar implacável (uma vez tiraram uma foto minha num destes momentos de ponderação, parecia um crítico de arte com meio século de vida aprisionado num corpinho dez vezes mais jovem) analisava meu trabalho. Fazia um ou outro ajuste, minúsculo, ainda que imprescindível, e retorno a afastar e olhar, repetindo o processo até que tudo esteja perfeito.

As páginas iam tornando-se escassas, já as possuia a um par de anos, e esta escassez, resolvi prontamente, passei a selecionar o que valia a pena registrar, e o que não. O que foi se tornando mais e mais e masi fácil, aquela interminável torrente de sonhos ia diminuindo. Minha mente se desenvolvia, eu já era capaz de engavetar na memória alguns deles, o que, de forma alguma, diminuia meu prazer em representar tantos outros, graficamente, em meu fiel companheiro. O pobre caderno estava nas derradeiras folhas, me orgulhava vê-lo assim, fiz tantas delas felizes, e elas retribuiram em igual medida.

Nunca cheguei a sequer tocar a última página. Fazendo de muito pouco, nos mudamos, na mudança perdeu-se o caderno, perdi-me junto, de tal forma, que até minhas lágrimas não encontrrei. O tempo passou, e em suas areias, foram as lembraças, do caderno, meus sonhos, aquele prazer ímpar. Com o tempo, os anos, com os anos, amores, estudos, trabalhos, vida de gente grande. E foi num dia, dessa vida adulta,pétrea, estagnada, responsável, de pai de família, que fui comprar um caderno para minha adorável filinha. Passando os dedos por brochuras, relevos, capas, folheando, uma lembrança me atingiu, como um tijolo caindo velozmente do firmamento; meu caderno. Uma lágrima, aquela que me fugiu décadas antes, correu meu rosto, parou na barba por fazer, aquela, que recusou-se a ser vertida tantos anos atrás. Comprei dois, uma caixa de giz, rumei para casa. Abri meu recém adquirido amigo, encarava-o com incontida esperança, dexei para um incerto depois, conhecido também como futuro, entregar o de minha filha. Acariciei a primeira página como se fosse o rosto de um primeiro amor, há muito perdido, rolei um giz entre os dedos, eles pareciam tão enormes antes; deliciei-me com aquela sensação, perdido em nostalgia, pus-me a rabiscar. Passei horas avidamente tentando estampar meus sonhos nele, e para aflição minha, atroz e impiedosa aflição, só consegui um único e minguante desenho. Nele, uma criança, sorrindo, milhares de possibilidades, tantas quanto uma vida pode dar, pairavam sobre o nada, que pairava sobre a inocente figura; coloquei meus olhos nela. Suspirei, longa e tristemente sobre o caderno, senti minha vida se esvaindo, junto com o ar que expelia, fechei o caderno e atirei-o ao lixo.

Com passos pesados, sem vida, desci até a cozinha e abri uma cerveja.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 27/02/2011
Código do texto: T2817945
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