Sonho e caminhada

Teimosia visceral é algo que me acompanha desde os meus primeiros tempos. Mas é uma teimosia calada, daquelas que me fazia ouvir, prestar atenção e tomar decisões com todos os riscos e possibilidades. Eu sempre fui assim. E quando a insistência sobre algum assunto vinha e era grande e a minha posição já estava tomada, eu, invariavelmente, respondia com um “pode deixar”, ou “é claro” ou mesmo um “é lógico”... Em outras palavras: “pode deixar que eu faço do meu jeito”, ou “é claro que eu assumo o caso à minha maneira” ou “é lógico que a decisão é minha”. E eu ficava – e ainda fico - aparentemente concordando com tudo, parando no meio da frase, evitando constrangimento ou qualquer tipo de mal entendido, afinal eu odeio brigas e gritos e o interlocutor tem a possibilidade de acreditar que me venceu. Assim, ele fica tranqüilo ao pensar que eu sou manipulável, uma geléia misturável e sem sabor, mas eu sou eu mesma, com identidade e CPF. Por isso, é interessante ter cara de tansa. A gente faz e acontece e tudo permanece em paz.

Então, aos 19 anos eu resolvi dar aulas. Ainda no 2. ano de História da Universidade de São Paulo eu resolvi dar o meu jeito no ato de ajudar a quebrar a maldita ditadura. Esclarecendo, fazendo pensar, questionando, quebrando paradigmas, inovando, além de greves, passeatas e corridas da polícia. Eu queria fazer valer o direito das minhas pernas andarem conforme mandava a minha cabeça e o meu coração. Não! Emprego burocrático nem pensar. Nada mais massacrante do ponto de vista da criatividade do que repetir regras, obedecer resignadamente a um diretor engravatado ou coisa parecida. Infelizmente decepcionei em muito o meu pai quando optei por cursar História! Muitas vezes ele chegou a dizer que eu iria morrer de fome com essa profissão e ele morreu sem nunca saber o quanto me ofendeu por isso. Mas, na realidade, eu queria criar, renovar, reinventar o mundo, porque nada mais cruel que uma juventude sem sonho.

O meu primeiro emprego como professora foi num curso Supletivo na rua 24 de maio, bem no centro da capital paulista. Eu ia para lá todas as noites e aos sábados pela manhã, depois das aulas na universidade. Comia pouco, andava e sonhava muito. Posso dizer que as minhas ideologias me sustentavam e, assim, eu não precisava comer tanto. Era bom ser magrinha naqueles tempos de autoritarismo: na hora de correr da polícia era muito mais prático.

Eu também dava aulas de redação e algumas delas eu ainda me lembro. Isso porque era importante demais ter nas mãos a sensação de mudança. Numa aula de sábado, enquanto os alunos redigiam, eu saí na janela do prédio, construído no início do século passado, e admirava os passantes apressados na calçada, no entrar e sair das lojas e me deslumbrei com a beleza da vida. E pensava no quanto era bom estar presente nas mudanças, o não se acomodar, o dormir menos por alguma causa. O quanto é bom acreditar!

E eu acreditava tanto na minha força que aceitava enfrentar todos os medos que o tempo me impunha. Sempre com terror a ter que enfrentar algum assaltante, saía dali, à noite, e ia literalmente correndo até o ponto de ônibus. Eu atravessava assim tanto a 24 de maio quanto a Praça da República,tendo sua beleza e sua história escondida pelos gravíssimos problemas sociais e as suas dezenas de pedintes e drogados espalhados e com tantos olhares, palavras e gestos ameaçadores. Entrava no ônibus e só respirava aliviada quando abria a porta do nosso apartamento, no bairro operário do Cambuci. Mas era um alívio egoísta, inquietante, arrasador, porque vizinho ao nosso prédio havia uma delegacia e, durante incontáveis noites, ao longo da minha juventude, eu ouvia gritos lancinantes de pessoas padecendo no cárcere.

Passados 32 anos de longas jornadas de trabalho me pego pensando que alguma coisa - mesmo que pequena, ínfima – eu consegui fazer por esse país e por essa juventude. Juntos, conseguimos sonhar, questionar padrões velhíssimos dos podres poderes. Tentamos desenhar algum direito para uma vida mais digna, embora ainda haja tanto a caminhar. Conseguimos inventar o ideal de democracia que, sendo tão jovem, erra tanto. E quantos jovens caminharam comigo! Vi olhos brilhando, senti confiança e amizade em tantos outros! Muitos me apresentaram seus filhos e me contam dos seus projetos de vida. Outros desabafaram problemas pessoais. E tem aqueles que viajavam e me traziam presentes e novos casos para contar. Outros mandavam cartões. Recebi flores e bombons. Cartas e bilhetes. CDS, filmes e alguma homenagem. Muitos voltaram para conversar, para me agradecer. Alguns ainda buzinam e me dão tchau. Mas têm aqueles – felizmente poucos – que falam mal, que debocham pelas costas e se deixam manobrar pela inveja de alguma colega que não sabe o que é dignidade. Esses jovens que riem malvadamente de um professor o que pensam? Eu não sei. Mas eu sei que aqueles que reconhecem a importância do sonho com muito suor sabem respeitar a vida e os seus desdobramentos

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 27/02/2011
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