PERDIDOS NA MADRUGADA

Em Bom Despacho, muita gente não esconde seu bocado de humor trágico. De matar, mesmo! Por ruindade pura, a troco de nada, mandam-se pro cemitério e dali ao inferno pessoas que continuam vendendo saúde, ou desfilando faceiras pelas ruas e praças da cidade. A 'causa mortis' normalmente arranjada é ataque cardíaco fulminante – porque, enfim, do coração morremos todos, mais de uma vez na vida, bastando apaixonar!

No começo do mês passado, comunicaram-me a morte do Jair-guarda-roupa (ele ganhara o apelido por se esconder dentro do dito móvel, quando o marido de certa morena fogosa voltou pra casa mais cedo e sem avisar!). Em legítima defesa da honra, desta vez, não houve comiseração, foram dois pipocos: pei! pei! e o don Juan foi ao solo, que nem fruta madura! Eu acreditei e nem fiz perguntas embaraçosas – como acredito ter o homem chegado à lua! Sem condições de dar os pêsames à família, mandei celebrar duas missas na intenção do repouso eterno da alma do Jair – que estas pendengas de traição no amor não se esgotam apenas em tribunais terrenos!

Decorridos uns pares de dias, meia-noite e qualquer coisa, retornava eu dumas quebradas, quando ao subir pela Rua Faustino Teixeira, em frente ao Fórum, cismei que passara por mim um destes carrinhos de supermercado - a toda velocidade -, na contramão! A fama é que bêbado vê dobrado. Juro por Deus: dentro da caçamba de arame onde as pessoas normais transportam suas compras, ia o Jair-guarda-roupa; e, mais incrível ainda, o bólido era pilotado pelo Johnny (este só não é mais doidão que eu, nas voltas de lua!). E ambos rindo a bandeiras despregadas! A realidade, tantas vezes dolorida, nos faz buscar refúgio entre sonhos e quimeras,

Ainda em dúvida se fora visão, sei lá, premonição – o tal sentimento que algumas pessoas experimentam antes de determinada catástrofe ocorrer... Ou, quem sabe, pelo desmoralizante pilequinho com uísque de terceira categoria, bebido despistado com guaraná... Contornei a Praça da Matriz, desci a Avenida São Vicente, e quando fazia a curva próximo ao prédio da Câmara Municipal, vi de relance, lá adiante, os dois pirados dobrarem a esquina, começando o baixadão pela Rua Olegário Maciel.

Acelerando fundo, consegui emparelhar ao carrinho de supermercado e sua dupla de farristas, pouco antes da lombada que depois descamba em descida íngreme, para quem vai a Sete Lagoas, Montes Claros, Brasília... De vidro baixado, gritei bravo: – Parem aí, seus loucos, vocês estão querendo morrer? Sem ao menos me olhar, o Johnny ranhetou alto: – Tira esta carniça de carro velho, pra lá, que a gente vai levantar voo! Tomando cerveja no bico da garrafa, o Jair foi igualmente irresponsável, fazendo pouco de mim: – Desinfeta logo, xará! Contrariado, dei um pião na cabeceria do morro, antes que assistisse a inevitável capotagem dos aloprados, no quebra-molas, lá embaixo.

Quem arrebentou a cara fui eu. Deus existe, deveras! E protege aos malucos e vagabundos que desafiam a lógica da vida: uns rabiscando crônicas fúteis; outros passeando em carrinho de supermercado, pelas ruas, bêbados, às madrugadas velhas. Logo na manhã do dia seguinte, encontrei o Johnny sem o menor arranhão. E por ele soube que o Jair-guada-roupa continuava todo pimpão, vivinho da silva. Vai ser bom: Bom Despacho!

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 03/03/2011
Reeditado em 06/05/2012
Código do texto: T2826434