A MUDANÇA E O MOSAICO

            Entrei com cuidado para não tropeçar nas caixas. No canto da sala, estavam os velhos bolachões de vinil juntos aos retratos de santos e antepassados embrulhados em papel de padaria. Fui para a garagem, onde ainda estava a velha cadeira de balanço. Fiquei assistindo aos trabalhadores passarem com os móveis, mudo, sem pensar em coisa nenhuma. Na parede, pintados a lápis-de-cera, desenhos de minhas sobrinhas, todos com temas de boas vindas para mim, quando retornei de uma ausência de quatro anos. Fiquei rindo de um que mostrava uma placa de proibição: um círculo com uma faixa vermelha atravessada e, no centro da placa, uma mala de viagem. Procurei por um apoio para me balançar e pus a mão na grade de madeira que dava para o quintal. Nas grades, as marcas dos dentes de meu cão, Bandit, feitas trinta anos antes. Finalmente alguma coisa começou a se mover dentro da minha cabeça e a realidade começou a pedir passagem.

            Tínhamos passado três décadas ali e eu sabia que agora era pra valer: tínhamos de deixar o lugar para que fosse demolido e desse lugar a mais um arranha-céus de luxo ou um estacionamento. Os últimos anos, eu tinha passado fora do país e, na verdade, achava que jamais veria a casa novamente ou o velho jambeiro na frente. Mas no fim das contas eu tive a chance de chegar a tempo para despachar o corpo.

            Meu pai aproximou-se com as mãos nos bolsos e deu uma olhada ao redor. Disse que estava indo ao bar em outra rua esperar que o caminhão da mudança passasse. Fiquei olhando o velho partir e comecei a perambular pela casa. Parei na janela do meu quarto, que estava fechada. Abri lentamente a janelinha que permite visualizar o lado de fora e libera a passagem de ar. Para meu espanto, no portão estava eu com mais ou menos uns 10 anos de idade vindo buscar uma bola de futebol que alguém tinha chutado. Minha respiração ficou suspensa. O que me chocava não era só minha juventude, mas a rua. Ela ainda estava sem calçamento e meus pés estavam todos sujos. A gritaria dos meninos era também insuportável, e nossa vizinha estava no portão da casa dela, ameaçando-nos de rasgar a bola na próxima vez que caísse lá. Mas nós não ligávamos, pois sempre conseguíamos pular o muro e chegar na frente dela. Era incrível como havia crianças brincando naquela rua! Dezenas! Verdadeiras matilhas barulhentas e sujas da areia da rua. Parecíamos tão felizes... Fechei a janela e todo ruído parou. Bem, agora só ouvia o zumbido dos carros que passavam em alta velocidade para uma rua tão pequena. A rua agora é calçada e não é possível avistar uma criança num raio de quilômetros.

            Me dirigi ao outro quarto que tinha a janela aberta para o quintal. Dali costumávamos ouvir o motor dos barcos a diesel dos pescadores quando entravam ou saiam da baía, como também a gritaria dos garçons que jogavam bola na praia às 4 da manhã. Agora, toda a visão que eu tinha era do imponente prédio de luxo plantado bem no nosso quintal. Parecia um pesadelo ou um conto de ficção científica. De onde teria saído aquele monstro tão alto e forte bem nos fundos da nossa casa?

            Parecia que eu agora começava a ouvir um murmúrio, confundido com os martelar incessante dos trabalhadores, algo assim como "o futuro chegou e o passado tem que dar vez e passagem modernizar crescer desmatar construir desapropriar pavimentar aplainar levantar altares a esse deus que se chama modernidade progresso futuro que logo deixam de ser e destruiremos e criaremos o novo de novo novamente novidade novinho em folha". Afinal Belchior já não cantava que o novo sempre vem? E aí eu pergunto se ainda é pecado amar o passado. É? "É você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem", cantava o cearense.

            O passado agora parecia o porto mais seguro. O ser humano perde toda estabilidade quando ele não tem história, referencial, registros, monumentos, ruas... Casas. E eu, que como Fausto, parecia ter vendido a alma em troca de progresso, do novo, de aventura, agora parecia pagar por isso, sendo arrancado do que era velho, mas sólido, rotineiro, mas estável. Estava agora como o doido do Whitman, que também era encantado com a aventura humana, mas que também caía na real de vez em quando. Sim, o rotineiro também é necessário e saudável e há vida nele se você souber percebê-la no cotidiano:

"Will you seek afar off?

You surely come back at last
In things best known to you finding the best or as good as the best" (Whitman)
(grosseiramente traduzido):
"Você vai continuar buscando na distância?

Você enfim certamente retorna, para as coisas que você melhor conhece, encontrando o melhor ou tão bom quanto o melhor"

            Após peregrinar pelos aposentos da casa, entreguei as chaves de meu carro a minha esposa, que as recebeu em protesto. Não liguei para o que ela falava e me dirigi também ao boteco na outra rua. Deixei a casa sem olhar para trás para não virar estátua de sal da praia do Pina (o que seria melhor ideia...). Juntei-me a meu pai e aos bêbados de plantão, que contavam estórias e piadas ou se gabavam de um passado mais glorioso. Eu e o velho não falamos mais sobre a casa ou sobre a vida. Apenas bebemos, ele a vodca dele e eu minha cachaça com cerveja. Enfim o caminhão e os carros passaram para nos pegar e assim partimos em direção ao futuro sempre incerto.

            Cheguei em casa tarde e cansado. No porta-malas do carro, estavam meus livros que ainda estavam na casa dos meus pais. Abri a porta para apanhá-los, mas não tinha mais coragem de arrumar ou carregar coisa alguma. No canto, um embrulho retangular e pesado em papel de jornal. Apalpei com carinho e abri lentamente. Dentro, um mosaico vermelho com temas rebuscados em branco, arrancado da sala de jantar.

 
R Leite
Enviado por R Leite em 10/03/2011
Reeditado em 19/11/2016
Código do texto: T2840426
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