Fim de caminhada e novos começos

Final dos anos 70 e eu comecei a trabalhar. Recém-egressa na Universidade, a tão desejada USP, a situação exigia trabalho e compromisso. Aliás, era mais do que necessário e, para mim, era o grande sonho. Me sentir produtiva, participante do mundo que se transformava. O mundo sempre se transformou, mas, naquele tempo, era hora de reconstruir o país, humanamente arrasado pelos abusos da ditadura e pela má gestão da economia. Era gente desempregada por todo canto e eu nutria um verdadeiro pavor dessa situação de empobrecimento sem volta. Tinha que ter volta. A sociedade tinha que se reencontrar com a vida, o sonho, o prazer e a magia de, conscientemente, mudar alguma coisa. Ou quase tudo.

Arrumei o meu primeiro emprego. Com toda a insegurança do mundo, enfrentei! E chegou o dia do meu primeiro salário. Era pouco mas, para mim, n aquele tempo e naquelas condições, era uma conquista e tanto! Pensei: vou comprar uma braçada de flores para a minha mãe. Comprei rosas. Tomei o ônibus a partir da rua Tamandaré, no centro, e rumei para o nosso bairro, o velho e charmoso Cambuci. Tive o prazer de deixar o salário inteiro, inteiríssimo, nas mãos da minha mãe para as despesas da casa. Me senti útil, comprometida, adulta. Assim foi o meu primeiro salário!

De lá pra cá, dei milhões de aulas para vários públicos: desde crianças de 5. a série até universitários, operários, metalúrgicos, filhos da mais alta elite intelectual e política catarinense, bolsistas, todos, invariavelmente, muito interessantes e que valeram o meu esforço, as horas mal dormidas, as centenas de horas de preparação e busca de recursos, as centenas de livros lidos, os infindáveis artigos de jornais e revistas, o dividir o tempo, o estar sempre estudando para poder ter o que partilhar e debater. Trabalhei em jornal de oposição, fui revisora de textos jurídicos e de psicoterapia, fui artesã e fui feliz.

E chegou a hora da aposentadoria. Eu não imaginava que essa hora seria tão importante! Foi o momento mágico de perceber a importância do dever cumprido, que participei da construção desse país, que ajudei a burilar corações e mentes de muitas centenas de jovens e outros nem tanto. Alguns me odiaram, mas a maioria me respeitou e respeita, o que me dá a certeza de que agi consciente do meu dever profissional.

Mas eu me aposentei e resolvi reservar exclusivamente para mim o meu primeiro salário. Seria o primeiro salário da minha vida, depois de quase 34 anos de vida produtiva, que seria totalmente meu.

Resolvi comprar algumas jóias. Um anel para mim, outro para minha mãe, mais uma pulseira. Depois pensei: um forno para as minhas pizzas e pães, um franguinho crocante, etc e tal, mas, na realidade, eu não precisava de nada. Resolvi muito bem a minha vida nessas três décadas de total dedicação ao trabalho. O que se apresentava para mim era o prazer de fazer algumas compras como uma forma de auto -reconhecimento por tanto esforço, tantos quilômetros em pé em ônibus lotados, com chuva e de vidros fechados ou andando a pé mesmo longas distâncias para economizar o preço da condução. Homenagem por ter suportado tantas dores de garganta e nas pernas. Reconhecimento por ter suportado tanto desaforo de alguns arrogantes sem nunca ter perdido a classe.

No final, eu não tinha no que gastar. Então, resolvi fazer um acerto com o meu dentista. Ele tratou da estética dos meus dentes da frente em troca do meu rico dinheirinho depositado na Caixa: claro que foi fantástico, afinal, não me faltam motivos para sorrir.

E sorrir muito, de verdade, porque continuo trabalhando e abrindo novas portas, valorizando a vida, as pessoas que também sonham, esse país extraordinário e os seus doces encantos.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 13/03/2011
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