NA BARRACA DE SEU BIU

O dia começou para mim logo quando o sol deu as caras. Ia ser um dia longo, mas não um dia ruim, muito pelo contrário. Dia carregado de lembranças e imagens: fui, pela primeira vez, apresentar minha filha à praia do Pina...O dia também foi de ensaio, tarde, às onze da noite... Como sempre, nessas noites, estou na barraca de seu Biu. Tento digerir as ideias. Tento dar voz aos acontecimentos do dia, colocar palavras na boca do sentimento, do coração. É lá que estou tentando organizar este texto na cabeça. Lembro de Clarice, que dizia que o verdadeiro significado estava no espaço em branco das linhas. Ela sabia escrever umas tiradas boas. Eu não...

            A barraca fica a vinte metros do estúdio, onde ensaio com minha banda de Rock. Impossível pensar num lugar mais estratégico para um bar. Sempre gosto de chegar mais cedo para me “concentrar” nas músicas. Fico ali tomando uma Skol da Antártica ou uma caninha ou ambas... Gosto também da variedade de petiscos: saquinhos de castanha ou batatinha frita industrializada. Às vezes, temos amendoim, também, mas só às sextas-feiras, que o movimento é mais forte. Os deliciosos tira-gostos ficam expostos na parede presos por clipes. Uma noite, lá pelas tantas, depois de não sei quantas, não havia nem castanha nem batatinha, mas tinha algo pendurado lá. Eu disse a seu Biu:

— Este é o acepipe mais estranho que o senhor já serviu aqui. Então ele respondeu:

— Meu filho, isto não é tira-gosto. Isto é um alarme de carros que estou vendendo!

— Ah sim, perdão, acho que já bebi um pouco...

            Antes de falar de seu Biu, é muito importante dizer que a barraca também fica a uns duzentos metros da praia do Pina. Essa é a praia que comparece aos meus sonhos quase que diariamente. Ou seria "diariamente e noturnamente", como falava um "escritor" de estratégias de futebol hoje no rádio? É, eu também ouço resenhas esportivas na rádio AM...

            Hoje o movimento no bar está fraco e o penúltimo pinguço acaba de sair. O cara já estava bem alto e foi cambaleando pela rua escura. A opção da noite dele? Conhaque Dreher diluído em água. Coisa de profissional. Seu Biu não está muito a fim de estender a noite. Vai lentamente arrastando as sandálias até uma das portas. Olha o céu e depois a rua. Acho que está conferindo se não vem algum cliente tardio a caminho. Ele volta e começa a procurar os cadeados. E o pessoal do ensaio atrasado... Tento ganhar tempo puxando conversa. A coisa é difícil porque ele é um pouquinho surdo. Eu sempre me sinto estranho exagerando nos lábios o pedido da cerveja. E ele sempre leva alguns segundos antes de reagir, sempre de sobressalto, como que atingido por um tapa. É como se minha voz não se movesse na velocidade do som, mas fosse caminhando preguiçosamente até os ouvidos dele: u...m...a.... cer...vee...jaaa!

Hoje, pela primeira vez, também começo a me perguntar sobre a idade dele. Tento adivinhar, mas não é fácil. Acho que a lentidão não bate com o aspecto físico. Mas dizem que os negros sempre enganam na idade. Como já estou curioso mesmo, pergunto.

— 72 anos — ele responde com um ensaio de sorriso.

Ele continua a mexer com os ferrolhos da porta. E eu em pânico.

— Faz muito tempo que o senhor tem esse bar?

— 40 anos.

As respostas vêm muito lacônicas. Mas pra minha surpresa ele toma a iniciativa:

— Mas faz 50 que cheguei aqui.

            Só então percebo que já paguei a conta e o troco já está em cima do balcão. Talvez por isso a vontade dele de fechar o bar. Enquanto o velho fala, parece que meus olhos estão enchendo d´água. Tenho a impressão de que estou com um riso na boca, não sei. Com os olhos nele, empurro lentamente o dinheiro de volta no balcão, para não assustá-lo. Tenho medo de que ele pare de falar. Ele conta histórias de juventude e de praia. Para meu alívio, ele pega o dinheiro enquanto fala:

— O que vai ser?

— Uma aguardente por favor.

Ele põe um copo no balcão e, enquanto olha para mim, vai emborcando a garrafa de Pitú. Meus olhos estão no copo que, a qualquer momento, vai esborrar.

— O senhor não vai parar?

— Aqui, quem diz é o freguês.

— Então pare pelo amor de Deus! Depois vão reclamar, com razão, acho, que estou vindo bêbado para os ensaios.

            Ele veio morar na avenida Boa Viagem nos anos 1950, uns dez anos antes de eu nascer. Sinto um pouco de inveja. Eu, como exilado da presença da praia. Ele, como um herói da resistência. Ao longo dos anos, todos os moradores tradicionais foram sendo expulsos da vizinhança da praia belíssima. Dos anos sessenta em diante, chegaram os prédios de luxo destruindo todas as casas da beira mar e das ruas vizinhas. Ele começou a me contar histórias de sua juventude e do seu relacionamento com a praia, com o mar e com as mulheres. Engraçado como eram parecidas nossas histórias! Aquele mar imenso ali na frente, aquele cheiro de sal. A praia sempre foi tão onipresente, tão estável, que nem notávamos que o mundo mudava em volta. Até o dia em que a perdemos...

            Só pude ficar com a impressão de que a praia do Pina foi uma grande mãe compreensiva, amorosa e, antes de tudo, testemunha imutável de várias gerações que passaram pelas areias dela, tomando banho de mar, pescando, ou simplesmente se amando. Tive o sentimento de pertencer à história da praia de alguma forma, de fazer parte, de alguma maneira, ao relacionamento com aquelas areias, jangadas e mar da praia do Pina.

            A praia tinha sido minha grande amiga desde minha infância. Cheguei lá com 8 anos de idade. Era o início dos anos 70 e, naquele tempo que conseguia, não sei como, ser um pouco mais inocente do que o de hoje, eu me dava ao luxo de fazer, intacto, os duzentos metros que me distanciavam da minha casa para o mar. Nas férias, só ia para casa no almoço e no jantar e, diga-se de passagem, pela manhã, só chegava bem tarde, pois aparecer nas areias antes das onze da manhã era motivo para ser chamado de “porteiro da praia”. Então, almoço era por volta das 3 da tarde, para retornar ao mar, muitas vezes, com o mesmo sal e roupa no corpo... As areias providenciavam as peladas de futebol, frescobol e voleibol. O mar entregava generosamente os peixes e as ondas para surfar. No meio de tudo isso, vinha o contato com as meninas, que flertavam durante o dia para, no cair da tarde, puxarmos assunto, quando não havia mais gente na praia...

            Já depois do 30 anos, tive que me afastar do Brasil e do Pina por alguns anos. Fui para um lugar distante onde a cidade nem tinha mar. Mas a praia habitou — e habita — meus sonhos o tempo todo, onipresente. Sempre dizia a um amigo que eu seria como as velhas tartarugas, que sempre voltam às areias onde nascem, não importa se uma centena de anos depois. Para nossa surpresa, quando afinal retornei, na mesma semana, ficamos chocados com uma matéria de primeira página do jornal , na qual era mostrada uma foto de uma velha tartaruga que, ao que parece, tinha encalhado nas areias da praia para morrer... Claro que isso foi motivo pra uma dezena de cervejas em busca do significado!

            Praia imutável, perene, com a mesma areia de sempre? Eu não sei. Na adolescência, não escapei, também, dos livros de memórias de Hermilo Borba Filho — o dramaturgo e romancista — nos quais ele narrava a vida nas areias do Pina nos anos 1940, onde ele chegava de bonde, parando em frente ao finado, hoje, restaurante Maxime. Eu poderia juntar Hermilo com as narrativas de seu  Biu e ver que a praia não só sobreviverá a todos nós, mas que ainda será a história de tantos por vir, com seus arrecifes ainda aparando as ondas do Atlântico por centenas de anos...

Entrei nas areias carregando minha filha que nem andava ainda, com aquele sentimento estranho de repetição, de déjà vu. No fundo, talvez, estivesse revivendo um ritual de tantos outros pais. Mas aquela imagem minha carregando-a nos braços não passou em branco para mim, nem para ela: enquanto a carregava, meu olhar estava fixo no rosto dela. Eu queria anotar cada reação, cada sobressalto, surpresa, medo... Mas nada. Aquele olhar... Não de espanto, que tantos me avisaram que iria haver, mas um sorriso que foi desenhando-se lentamente, um sorriso de quem reconhece — ou reencontra — uma velha amiga... A garota olhou para mim, como dizendo que estava tudo bem e que eu já poderia relaxar...

Larguei-a na areia perto da água e ela , sem medo algum, como quem corre para um grande amor, imediatamente engatinhou de encontro às ondas...

 
R Leite
Enviado por R Leite em 14/03/2011
Reeditado em 29/05/2020
Código do texto: T2848629
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