LEMBRANÇAS
 
José sempre gostou de ler. Às vezes eu acho que quando ele nasceu já sabia ler. Ele aprendeu a ler muito antes de aprender a escrever. Na verdade ele tinha uma vontade imensurável de aprender a ler. A leitura era para ele a coisa mais linda e mais útil que uma pessoa pode praticar na vida e ele continua achando, apesar do pouco tempo que ele dispõe hoje para tal.

Tudo começou quando ele tinha apenas oito anos de idade. Certo dia, numa daquelas manhãs ensolaradas, seu tio lhe pegou falando sozinho no quintal de sua casa. Naquele momento, segundo o tio dele, José estava fazendo pequenos cálculos matemáticos, atitude aquela que chamou a sua atenção. Deveria estar calculando com quantos paus se faz uma cangalha (armação de madeira que sustenta e equilibra a carga no lombo do burro, cavalo ou jumento).

José morava na zona rural e ainda não estava freqüentando uma escola. Sua irmã mais velha já freqüentava as aulas de uma das escolas de reforço existentes na região. Eram escolas particulares, conduzidas por pessoas leigas que as mantinham em funcionamento como forma de ganhar alguns "trocados". A irmã dele estava radiante por estar freqüentando as aulas da professora Mariazinha. A professora era uma jovem alta, um pouco magra, de semblante carrancudo, tinha olhos graúdos e era um tanto quanto severa.

José não conheceu os seus pais de sangue. O seu tio, apesar de semi alfabetizado, fazia um esforço descomunal para dar uma assistência e/ou resolução nas atividades escolares que a irmã dele teria que fazer na casa dela. Ela estava cursando as primeiras letras e as aulas eram tiradas de um livro chamado "Cartilha do Povo". As atividades escolares eram poucas, mas elas tinham de ser feitas regularmente, caso contrário ela teria que prestar conta para a professora Mariazinha, aquela professora enérgica mencionada acima. José já acompanhava de ouvido, aqueles ensinamentos que poucos meses depois viriam a ser muito úteis para ele.

A vida na zona rural naquela época era um corre-corre danado e foi exatamente em meio a essas turbulências que ele começou a freqüentar uma escola particular situada em um vilarejo conhecido como Vila das Macambiras, ou simplesmente Macambiras, existente no município onde ele nasceu. Ele achava muito interessante, e porque não dizer, muito importantes as pessoas que liam de forma desembaraçada e ele não conseguia entender por que a irmã dele e outras crianças que freqüentavam aquela escola tinham de soletrar tudo antes de ler. Ele sonhava todos os dias com a chegada daquele dia em que o tio dele o levaria para a escola particular da Vila das Macambiras. E enquanto aquele dia não chegava, ele permanecia trabalhando com o seu tio na pequena propriedade que era cultivada na condição de meeiro do Dr. Janjão.

Finalmente esse momento chegou. Estávamos vivendo o início da primavera do ano em que o homem chegou à Lua pela primeira vez. Acredito que ele tenha começado a estudar no mês de outubro. Recordo-me perfeitamente do seu primeiro dia de aula, do segundo, terceiro e dos dias subseqüentes. No início ele queria aprender tudo o que era ministrado na classe: a sua lição e as dos demais colegas. Ele era uma verdadeira máquina programada para a leitura. Memorizava tudo o que ouvia durante as aulas e em pouco tempo ele já estava lendo de forma desembaraçada e foi justamente nesse momento em que ele se transformou numa grave ameaça para a escola da professora Joana, pois em face da sua grande vontade de aprender a ler os seus colegas passaram a lhe ver como um intruso, como um aluno que tinha privilégios, pois ele mal tinha acabado de chegar e já queria sair na frente.

Devido à sua imensurável vontade de aprender a ler ele não teve tempo de aprender a escrever. E foi um rebuliço danado para ele acompanhar as atividades que envolviam ditados, redações, exercícios escritos em geral. Passou a ser observado de perto pelos seus colegas que descobriram que apesar de ele saber ler mais rápido que seus colegas, ele tinha o seu ponto fraco que era a escrita. Mas ele em pouco tempo se superou e depois de alguns meses, aos trancos e barrancos, aprendeu a escrever e de lá para cá ele continua agindo como aquele mesmo aluno persistente e ávido para aprender a ler e a escrever a qualquer custo, a qualquer momento e em qualquer lugar.

Ah! Eu já estava esquecendo. Quanto ao interesse de José pela leitura, eu não tenho duvida, ele proveio da sua grande simpatia pelas leituras dos grandes "best-sellers" da literatura de cordel nacional. Naquela época quem soubesse ler, de forma rápida e com uma leve pitada de emoção, os livros que circulavam nas vendas e feiras livres dos arraiais e pequenas cidades ali existentes, seria considerado um rei.

A leitura desses livros era feita nos lares, clubes e bares de pequenas cidades e arraiais existentes naquele pacato nordeste brasileiro.

Muitos anos se passaram, contudo, ainda é comum a circulação desses livros nas feiras livres ou nas pequenas bancas de jornal em algumas cidades do norte e nordeste do nosso Brasil.

Aquele menino cresceu, migrou para a cidade grande, e de vez em quando, nos momentos em que lhe bate a danada da saudade, ele retorna para rever seus entes queridos e a beleza natural do seu torrão adorado. E para não perder o costume José resolveu escrever esses versos, simples, porém, verdadeiros, que relembram um pouco o seu tempo de criança.

Saudades dos tempos idos,
Lembranças do que passou,
Daqueles dias vividos,
Que a memória guardou.

É pena que o tempo passe,
Deixando em tudo a lembrança,
Eu sinto muita saudade,
Do meu tempo de criança.

Bons tempos aqueles! Ali, naquele lugar, naquela fase pueril da sua vida, ele era tão feliz quanto ele se sente neste momento. Sabe por quê? Porque ele continua sentindo saudades de tudo o que lhe faz feliz.
Germano Correia da Silva
Enviado por Germano Correia da Silva em 08/11/2006
Reeditado em 10/12/2020
Código do texto: T285990
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