A partida do senhor ministro

Dia 23 de Março: o primeiro ministro demite-se. Vai-se embora. Foi. Irá, talvez. Desarrumou o país, maltratou as classes profissionais, pôs uns contra os outros, instalou um mal-estar, uma tensão insuportáveis. Mas falou bem, sempre muito bem, com aquele dom que ele tem de comunicar, de fazer malabarismos com as palavras. Aguardam-se os próximos discursos, agora com a aura do "herói" incompreendido, do "salvador" derrubado.

Tenciono desligar a rádio, a televisão e o telemóvel. Não quero ouvir mais nada! Não aguento ouvir mais nada. Foram, para mim, cinco anos absolutamente insuportáveis. O outro ano, não dei por ele. É meu hábito não ligar muito à realidade propriamente dita. Mas o primeiro ministro, que agora disse ir embora, tornou a realidade de tal modo intensa e grande e visível que não tive outro remédio senão dar por ela (começou neste momento a chover torrencialmente). Posso dizer que dei por mim a ver-me, pela primeira vez, como adulta, cheia de responsabilidades e deveres pavorosos. Pior: dei por mim a desempenhar uma quantidade absurda de tarefas tão desgastantes como inúteis, estéreis! Dei por mim a ver, pela primeira vez, como afinal os adultos são tão falíveis, irresponsáveis e levianos. E arrogantes. E insensíveis (isto já tinha visto, eu própria também pratico a insensibilidade). E cruéis. E mentirosos. Numa palavra: maus. Muito maus. Afinal o mundo era/é muito diferente daquilo que eu pensava e, registe-se, eu sou profundamente pessimista. Ou seja, as minhas expectativas quanto à vida e à felicidade são quase nulas. Eu não espero nada. Mas toda a minha desesperança e conformismo não me prepararam para toda a "agitação paralisante e paralisia agitante" (a expressão não é minha) dos anos dos governos do senhor ministro. Não pensava ser possível que eu, com um curso superior, me visse a trabalhar sem um módico de autonomia. Afinal, uma licenciatura deveria dar-me capacidade para agir, decidir, fazer, dentro das regras deontológicas, claro. Dei comigo a ser programada para agir como um robô. Dei por mim também a reagir contra, a ser rebelde (mais ou menos, tenho uma falta de jeito...), a juntar-me aos "resistentes" (patético!), a tomar posições, a alinhar com aqueles, poucos, que dizem não até ao fim, ou seja, até ao momento em que as salas de "revoltosos" começam a ficar vazias, e os "revoltosos" moderados abandonam o recinto, para não se notar muito que são "revoltosos". E ali estava eu, na sala já vazia, juntamente com a outra meia dúzia de "revoltosos" resistentes, a lutar por diversas coisas: a dignidade, a dignidade, a dignidade, etc. Ali estava eu no turbilhão, ansiando, porém, pela calma, pelo regresso a casa, ansiando, fundamentalmente, que tudo não passasse de um pesadelo, uma alucinação, um programa de apanhados, uma partida de mau gosto. Porém, como ninguém me dizia, "olhe ali a câmara, é para a TVI", compreendi que isto/ aquilo era a realidade.

Tomei então medidas drásticas: tornei-me militante dum partido! É preciso agir? Tudo acontece apenas dentro da política? Muito bem, vou ter um lindo cartão azul com o meu nome. «Estou assustada, a realidade impede-me de apreciar a solidão, tenho que juntar-me a alguém, não posso continuar sozinha». Foi isto que pensei, antes de pedir o cartão.

Hoje, finalmente, no meio de várias crises: a real, a inventada, a de que se fala, a que ainda não conhecemos, entre outras, o senhor ministro despede-se, ameaçando juntar, com a sua partida, mais caos ao caos já existente. É demasiado caos! Ainda assim, o meu primeiro sentimento foi de euforia, a euforia que se sente ao ver partir de nossa casa uma visita desastrada e inconveniente. Depois, foi de medo. Depois senti-me frágil e angustiada. Depois disse: "Quero lá saber...!" Depois, ainda, cheguei a casa e liguei a SIC Notícias. António Barreto falava. Calmo. Com voz baixa e forte. E firme. Dizia coisas sensatas, assustadoras, também, e sábias. E dizia tudo, repito, com uma voz que era tudo menos o habitual. Por habitual, entenda-se a forma excitada e convencida daqueles que parecem tudo saber. Ou a forma arrogante dos sábios de profissão. Ou o ruído oco daqueles que falam porque têm licença para falar. Ou a boçalidade. Ou a ignorância pura e simples. Ou, numa palavra, a grande falta de educação que tudo, quase, inunda: a falta de maneiras e educação que estacionou em Portugal. Não falava assim António Barreto. Dizia coisas terríveis, repito, e sensatas, com uma voz calma e baixa, e bela, e grave. Nem sempre gosto de António Barreto. Mas gostei muito, hoje. E quando acabou o programa, fiquei com uma sensação de quem está numa casa vazia, desconhecida e sem cobertores para se proteger do frio. Ainda peguei no telefone, para falar com o T.A., mas desisti.

Hoje, neste dia em que o senhor ministro diz/ disse que vai embora, gostava de ter alguém em casa, ou mesmo na rua, para me dar um abraço, para falar comigo. Ou seja, o senhor ministro irá embora, mas ainda levará um tempo até eu conseguir desligar novamente da realidade. Altura em que não penso em abraços, ou em conversas, ou outras coisas remotamente agradáveis, mas definitivamente humanas.