Sem roupa, sem rumo

A solidão do quarto, a luz do abajur, nuvens e astros no céu compõem a obra que vejo através da janela aberta. Penso em Oswaldo Montenegro, penso na Lista.

Faça uma lista de grandes amigos.

Quem você mais via há dez anos atrás.

Quantos você ainda vê todo dia?

Quantos você já não encontra mais?

Faça uma lista dos sonhos que tinha.

Quantos você desistiu de sonhar?

Quantos amores jurados pra sempre?

Quantos você conseguiu preservar?

Onde você ainda se reconhece?

Na foto passada ou no espelho de agora?

Hoje é do jeito que achou que seria?

Quantos amigos você jogou fora?

Quantos mistérios que você sondava?

Quantos você conseguiu entender?

Quantos segredos que você guardava

Hoje são bobos ninguém quer saber

E quantas mentiras eu condenava, meu Deus! E quantas tive que cometer? Quantos arrependimentos! Toda vez que minha mente se remete ao passado, reconheço claramente os atalhos nos caminhos antes turvos, eu os via e não os enxergava. A míope visão da inexperiência cegara-me por completo. Quando olho no espelho e enxergo minha imagem dez anos envelhecida, creio ser tarde demais para retomar algumas rotas e, simultaneamente, demasiado cedo para a tomada de importantes decisões.

Como nossa vida é intrinsecamente conectada às coisas do mundo e às pessoas. Impossível qualquer ser humano ficar alheio a isso. Ao olhar-me no espelho agora, meu Deus, invejo a quem é capaz de minimizar essa sina e desprender-se, ainda que, parcialmente, desses valores, desprender-se das pessoas. Sentir menos. Quem sente menos, ama menos, é bem verdade, mas a igual verdade é que também sofre menos.

O sofrimento e a agonia ao meu lado, a minha frente a brisa leve de uma noite de outono adentra o meu quarto cheio de aflição sem pedir licença, sem ser convidada. Apesar de sua intromissão, sua recém-presença é bem-vinda. Não me sinto só, enquanto a brisa tocar belamente minha face, é a prova de que eu ainda existo. Como é lindo o exato instante em que me esvazio de pensamentos do mundo em que me cerca e me concentro integralmente e profundamente no meu interior. Só, neste quarto, é como se eu não estivesse. Absoluta certeza que, além da brisa que me toca a face e arrepia meus pêlos, há um lençol emaranhado na cama, uma toalha molhada sobre a cadeira e as angústias de um homem, com sentimentos transbordando sua existência.

A cada instante tomamos decisões que norteiam o rumo de nossas vidas. A cada fração de segundo podemos traçar mudanças definitivas em nossa trajetória. O livre arbítrio, generoso regalo do criador às criaturas, permite-nos ser pessoas diferentes a cada momento. Com os pulmões cheios de ar, nessa fração de segundo, por exemplo, decido cessar com minha respiração. No instante que sucede àquele, decido não retornar a respirar, no outro decido manter minha posição, para encontrar sei lá o que. No instante seguinte decido morrer ali, por falta de novo oxigênio da circulação sanguínea, mas os movimentos peristálticos do meu organismo, agem contra meu livre arbítrio e me mantém vivo, até o próximo instante, no qual, inconscientemente desisto de tal ação.

A fraqueza gerada pela falta que o ar me faz desperta-me delírios, e os delírios se convertem em sentimentos que eu tenho ou tive. Tais sentimentos invadem minhas entranhas. Nesse momento, posso sentir a tristeza correndo pelas minhas veias. Assim como o sangue venoso, praticamente desprovido de oxigênio, a tristeza entra no ventrículo esquerdo do meu coração. Uma vez lá alojada, o sentimento se conforta. Percebo dentro de mim que ele preferia se quedar ali mesmo. Todavia, apesar da falta de oxigênio, por sorte ainda vivo, e meu coração ainda contrai e relaxa e, por conseqüência, bombeia o sangue e a tristeza. Os dois saem pelo átrio direito do músculo e correm pela artéria com objetivos similares, porém distintos. O sangue chegará em breve aos pulmões para receber novo oxigênio e distribuir o mesmo para todo o organismo do homem que se encontra nu em frente ao espelho. A tristeza pretende esfacelar-se em bilhões de microscópicas partes e dissolver-se em cada centímetro cúbico pertencente àquele corpo.

Ainda sem nova entrada de oxigênio, meus pulmões recebem a inesperada visita da saudade. Sentimento estranho e sem explicação. Sentimento presente no fraco sujeito, refletido no espelho, com muitas realizações e barba por fazer. Tenho pena desse sujeito cujo a imagem refletida minhas retinas absorvem nesse momento. Esse sujeito sou eu, nu e inundado de saudade. Só eu estaria se não fora pela brisa leve que ainda me toca a face e os delírios convertidos em sentimentos que me consomem. Há dez anos, naquele mesmo espelho, minha imagem refletida era outra. Lembro-me dos grandes amigos da época, amigos para sempre que nunca mais os vi. Lembro-me dos sonhos que tinha, que desisti de sonhar.

Saudade, saudade, saudade. Sentimento estranho que domina. Aquele sangue venoso que acabara de sair do coração chega aos pulmões, carrega-se de oxigênio e saudade e os espalha para cada parte obscura e escondida do meu ser. Ao pensar em saudade, lembro-me de Izabel e da Canção de Amor:

Saudade

Torrente de paixão

Emoção diferente

Que aniquila a vida da gente

Uma dor que não sei de onde vem

Deixaste meu coração vazio

Deixaste a saudade

Ao desprezares aquela amizade

Que nasceu ao chamar-te meu bem

Das cinzas do meu sonho

Um hino então componho

Sofrendo a desilusão que me invade

Canção de amor

Saudade...

Saudades de Izabel. Saudade é tão ingrata, saudade é tão maluca, saudade não se explica. O vocábulo saudade não se traduz para qualquer outro idioma. “To miss something”, “echar de menos”, “vermissen”. Verbos e expressões chegam perto, mas “sinto falta de algo” de fato não é “saudade”. Saudade é tão só que o próprio vocábulo sente saudades dos seus similares em outros idiomas. Insuportável dor do infeliz vocábulo que não teve a chance de não ser só. “He misses”, “él echa de menos”, “er vermißt”, ele sente mais do que ninguém.

Saudade do que não conhece, do que nunca viu. Saudade de Izabel, saudade dos bons momentos que não passamos juntos, saudade das noites de amor que não tivemos, das músicas que não fiz para ela, dos sonetos que não escrevi. Izabel entrou na minha vida para me deixar saudades. Às vezes penso ser Izabel a própria saudade encarnada, vingando-se de sua miserável existência em pobres coitados como esse refletido no espelho. Penso isso por pensar em Izabel e só enxergar saudade. Só.

Eduardo Guimarães
Enviado por Eduardo Guimarães em 11/11/2006
Código do texto: T288078