ABAIXO-ASSINADO

Qual um artesão paciente que escolhe pedrinhas pelas cores e tamanhos, até compor o mosaico no piso; ou um pintor que combina tintas, na busca do retrato fiel da mulher amada; sentimental, pesando e medindo cada palavra falarei aqui deste convívio de vinte e três anos (poucos casamentos duram tanto!) com meu automóvel: O Santana! Que afirmo ser cor de vinho, enquanto os documentos registram como vermelho. Vinho e vermelho – em qualquer situação – despertam paixões arrebatadoras!

Em casa, diariamente, me atazanam a vida para dispor do carro: nenhum de nós dois estaria mais em condições físicas confiáveis! Posso até ser umzinho descartável, mas o Santana está longe de merecer o apelido de calhambeque! Crianças à época da compra – vinte e quatro suaves prestações mensais –, talvez meus filhos não se recordem que em nossa primeira viagem no carrão, fomos desfrutar sóis, ondas e areias das praias de Guarapari! Destino, então, de onze entre dez turistas bom-despachenses.

No restaurante o mais velho pediu um prato com frutos do mar, que deviam estar verdes, pois não engoliu a primeira garfada; o do-meio entendeu de surfar marés altas, coroadas de espuma efervescente, montado numa prancha de isopor, e foi atirado longe, na orla, ficando parecido com bife a milanesa; o caçula alugou uma patinete motorizada e saiu desembestado, somente encontrando-lhe os freios quando bateu num muro de cimento; a mãe deles, indo no carro-zero conhecer o comércio da cidade (mulheres e lojas se atraem) retornou de táxi, por dirigir na contramão; eu passei três dias de molho na cama do hotel, enjoando, após balançante viagem de barco...

Nas férias seguintes, ele nos levou para uma viagem internacional – por terra firme, longe do mar e seus enganos – e com propósitos de fazer muitas compras. Partindo de Bom Despacho, os três países mais próximos são Bolívia, Paraguai e Argentina. Pra não haver maracutaia decidimos realizar um sorteio do destino. Peguei um dado (aquele cubo branco com pintinhas pretas nas bandas): uma ou seis viradas pra cima – mascaríamos folhas de coca em Cochabamba! Duas ou cinco, garantiam um tango em Paris! perdão, Buenos Aires! Com as restantes três ou quatro bolinhas pro alto... nos assanharíamos em compras ao lado de lá da Ponte da Amizade!

Foz do Iguaçu-Ciudad Del Este! E o Santana entrou em terras paraguaias! E nós, ávidos por produtos importados, invadimos shoppings de indianos e chineses trazendo a cota máxima de cigarros franceses feitos no Haiti; uísque inglês destilado na Jamaica; aparelhos eletrônicos com etiqueta ‘Made in USA’, fabricados em Hong Kong...

Adultos, hoje, os rapazes guiam seus automóveis e se referem ao Santana com algum desdém. Chamam ele de maresia, condução obsoleta, grandalhão, cheio de quinas... Mal sabem que pra mim estes ‘defeitos’ são vantagens. Forreca é aquilo que dirigem: marcas diferentes, porém modelos xerocados – frangos de granja! A pressão para eu deixar meu ‘carango’ a venda numa ‘garagem’ está quase insuportável. Por sua conserva, espaço interno, e, lógico, as aventuras e estórias amorosas protagonizadas... um rifeiro (sujeito que enche o carro de bugigangas e vai vender no Acre) quis comprar o tesouro! Venho resistindo. Para garantir meu moral elevado idealizei passar um abaixo-assinado, entre os leitores e as amigas do Recanto das Letras - se solidarizando e exigindo que o Santana continue comigo. Conto com seu autógrafo!

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 02/04/2011
Reeditado em 27/10/2011
Código do texto: T2884506