"Coisas da Vida"

Ao sairmos do Shopping tomamos um ônibus para o centro da cidade. O ônibus estava quase vazio, quando começou o movimento de deslocamento e paradas onde subiam e desciam passageiros, coisa normal, tão natural quanto o ir e vir das ondas do mar. Sentada próxima à porta de saída, numa cadeira dupla, junto ao corredor, fiquei atenta em não inibir quem desejasse sentar-se junto à janela.

Depois de várias paradas, chegamos numa mais movimentada, ao lado de um espaço onde havia inúmeras barracas de produtos diversos, parecia próximo ao mercado público da Capital de Pernambuco. Nesse local (Terminal do Cais de Santa Rita) saem e adentram inúmeras pessoas no ônibus, dentre elas um jovem com idade de, aproximadamente, 18 anos e com aparência de quem experimenta dureza na vida. Trocamos olhares e perguntei-lhe se gostaria de sentar, naturalmente ocupou a cadeira ao lado da janela e foi logo dizendo:

- Que música doida toca nesse lugar, o povo gosta de coisa que não presta.

Perguntei: - E você de que tipo de música gosta?

– Gosto de música religiosa, meu sonho é compor e cantar rock em louvor a Jesus, por isso vim para Recife. Passei um tempo dormindo nas calçadas, mas agora tomo conta de carros em Boa Viagem e ganho uns trocados. Quero realizar meu sonho.

Esse foi um momento mágico. Nos olhamos mais um vez, quase não contive as lágrimas quando o vi sorrir sem os quatro dentes superiores. Seu sofrimento não tirou-lhe o brilho dos olhos, quando falou-me do sonho. O ônibus chegara numa parada seguinte, Ivânio fez-me sinal que íamos descer. Restavam apenas alguns segundos, não deu-me tempo perguntar-lhe o nome, apenas pude dizer:

- Não desista!! Uma porta para realização do seu sonho é a escola, estude!

Ele demonstrou ter entendido, com o movimento espontâneo da cabeça.

Desci do ônibus ainda contendo as lágrimas, tomada pelo estado de impotência, motivado pelo sistema que sabia insistir em naturalizar a miséria, e que impede o direito humano de viver dignamente. Não sei se o caminho que apontei é de acesso àquele adolescente, pois sabemos o quanto estamos longe da universalização e não tive outra coisa a dizer. O dia permaneceria sombrio se não tivesse assistido o documentário “José e Pilar”, sobre Saramago. No filme, foi-me possível retomar a consciência de que é preciso não desistir da luta contra a desigualdade social, causada pela desenfreada ganância de uma determinada classe, que acumula riquezas e bens e decreta a negação do direito humano mais elementar, que é viver.

Recife, 07 de janeiro de 2011.

(Revisão – Ivânio Cunha)