A cena não era muito diferente de um desses nossos terreiros, só que a música era um daqueles blues lentos, rasgados. A banda tocava baixinho, todos com os olhos pregados no negro com a guitarra a frente. Os músicos faziam o melhor que podiam para reforçar as estruturas da música, para manter a casa em pé, mas a missão era dificílima! O rei de Chicago começava uma subida lenta e nervosa, crescendo em intensidade pelo braço da guitarra e foi quando ele disparou um olhar vidrado para o lado, como que avisando que o santo iria baixar...

 
          Eu estava na casa de amigos, assistindo vídeos. Eu tinha vários discos de Buddy Guy, o herdeiro de Muddy Waters em Chicago, mas naquela época eu ainda não tinha visto aquele louco em ação. Já íamos bem altos de cerveja e coquetéis "molotov" de tequila, e um cinzeiro abarrotado de pontas de Marlboros, mas aquele negão, que portava uma Fender preta com bolinhas brancas, estava muito mais doido do que nós juntos!

 
          Ele chegou ao fim do braço da guitarra e empacou num grupo de notas e ficou a tocar com os olhos fechados e a tremer-se todo usando a mão direita para atacar as cordas freneticamente e nisso eu ia levando meu copo à boca mas a mão parou congelada no ar e a língua seca aguardando a cerveja e eu não conseguia tirar os olhos do homem entrando em transe tresloucado que aparentemente tinha deixado o corpo ali tocando mas que o espírito na certa já ia sendo carregado por alguma entidade que ele tinha provocado invocado quando ouvi um grito terrível vindo da minha direita Ahhhhhhh que quase carrega minha alma junto e um baque surdo com meu amigo de pernas pra o ar gritando "chamem uma ambulância !!!"

 
          Alguns anos depois, já em Atlanta, EUA. num belo sábado à tarde, estou no metrô, trem lotado de gente bonita, muitos cantando, rindo, tomando umas, todos se dirigindo ao Piedmont Park para o Midtown Festival: 3 dias de música, 10 palcos, e uma centena de atrações, tudo por módicos $15 dólares por dia! Eu não sei para quais shows aquela multidão está indo. Eu só sei que preciso entrar no parque e me dirigir ao primeiro palco à direita para ver o cara que influenciou não só Eric Clapton e Stevie Ray Vaughan, mas, principalmente, Jimi Hendrix: Buddy Guy!

 
          Consigo ficar perto do palco, mas um pouco na lateral, perto do quiosque da cerveja, que eu não tenho coragem de enfrentar aquela parada no seco. Ele entra com a guitarra e a língua afiadas e dispara uma meia dúzia de petardos. Sola feito um insano, quebra logo uma corda, que ele já faz de propósito, e é todo mundo gritando "é isso mesmo e bote pra f...!!!" e tome cerveja sendo emborcada como se fosse água, gente gritando "filho da p...!!!" e eu inclusive, em português, inglês e espanhol pra não deixar dúvidas, e a interação que ele faz com o público...meu Deus... é até heresia dizer... mas nem B.B King consegue!

 
          Ele manda a banda tocar baixinho, enquanto conversa com a audiência, faz perguntas e ouve gritos lá de baixo, dá gargalhadas, saltinhos pra trás, mais gritaria, e mais impropérios, e ele conta, ou canta, estórias de traições sofridas, e o povo responde esculhambando a adúltera como se a conhecessem, ou completando as letras, ou ele manda o público fazer silêncio com a mão direita, enquanto sola com a esquerda e por aí o show segue, impecável.

 
          Quando falo na língua afiada de Buddy Guy não é só em referência ao cantar, mas também em relação às rádios, gravadoras, produtores, e ainda cabe mais gente, que não ouve, não apoia as tradições negras do Blues, e que nem B.B King tem espaço nas rádios, ou então Buddy critica a juventude negra que só quer saber de Hip-Hop , e isso não é difícil constatar a preferência da população negra, ao ver aquela maioria arrasadora de brancos na plateia...

 
          No fim, como não poderia deixar de ser, ele sai solando com a guitarra sem fio pelo meio da multidão enlouquecida, o que torna os shows dele tão inesquecíveis, com a chance de ver o mestre cara-à-cara! Vou também guardar pra sempre aquela imagem dele indo bater nas portas dos banheiros públicos! Ele consegue cortar pelo meio da multidão e vai parar nos banheiros, que ficam a uns bons cem metros do palco. É hilário ver os caras, ou mulheres, abrirem a porta e se depararem com o negão solando na frente deles, o que deveria ser um caso pra se mijarem de novo, dessa vez nas calças!

 
          Pulamos todos em socorro do amigo, que estava por trás de uma poltrona, como diz o povo, "estatelado" no chão, a mão suspensa no ar, com o copo de tequila cheio - coisa de profissional - sem derramar uma gota! O palhaço tinha tentando simular uma queda por causa do solo de Buddy, mas o "nível de sangue no álcool" acabou derrubando-o de fato, e ficamos ali todos no chão sem conseguir parar de rir!
R Leite
Enviado por R Leite em 08/04/2011
Reeditado em 13/04/2011
Código do texto: T2897103
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