Encarnação em Gabriel Marcel

Marcel considera que a verdadeira subjetividade se dá na relação com alguém. Nessa relação, é preciso entrega mútua e reciproca, é preciso desprender-se de si para compreender sua própria subjetividade. Se cada qual descobre sua subjetividade na medida em que se entrega na relação com alguém, não se trata simplesmente de subjetividade, mas de uma intersubjetividade, o eu que descobre sua raízes mais profundas no encontro, na relação. Logo, o ser é relacional, é metade existencial incompleta, que necessita do outro. Um necessita da participação plena e sem reservas do outro e vice-versa. Para Marcel, é a participação entre ambos que garante que o homem enfrentar sua condição humana, empresa essa que fracassaria se estivesse sozinho. Pois bem: nem intersubjetividade, nem entrega, nem participação seria possivel, se não houvesse uma corporeidade, uma encarnação, e para Marcel, aqui está o ponto central da investigação filosófica. É a partir da corporeidade, que o ser humano pode estabelecer suas relações. Contudo, isto não implica que o homem se reduza a um corpo. Marcel não concordaria com uma instrumentalização do homem enquanto corpo. Segundo ele: “Trágico é o ser-com enquadrar-se ou ser enquadrado no horizonte do ter, da posse, sujeito às coisas”[1]. Péssimo negócio seria deixar o ter assumir o domínio do ser para o outro. Uma relação dominante e dominado está muito longe do ser para o outro, ou seja, da verdadeira intersubjetividade. Não se trata de uma relação sujeito e objeto, mas uma relação sujeito-sujeito. Nesta relação entre sujeitos, ambos interagem e são interagidos. Não há espaço aqui para tornar o outro como objeto, ou como um meio, ou qualquer instrumentalização que seja. Há o eu e há o tu, e ambos são sujeitos. Aqui emerge o mistério do ser, que: “... é algo a que estou ligado, não parcialmente, por algum aspecto determinado e especializado, mas inteiramente, enquanto realizo uma unidade que, por definição, nunca pode apreender-se a si próprio, podendo somente ser objeto de criação e de fé. O mistério faz desaparecer a fronteira entre o em-mim e o perante mim.”[2] Há dois sujeitos que participam da relação e fazem com que o que era dois sujeito possa se tornar um só sujeito. O eu e o tu em relação é o eu-tu. É uma fusão ontológica dos sujeitos, por assim dizer. E como fica a corporeidade do sujeito unificado eu-tu? Diria que a corporeidade dos sujeitos distintos se mantém, mesmo na fusão ontológica dos sujeitos. É somente uma fusão ontológica de sujeitos e não fusão de corporeidade. E como fica a individualidade dos sujeitos ? Diria que não há perda da singularidade, da individualidade de cada qual, e há liberdade nesta unidade de sujeitos. Nesta relação, não há dominantes e dominados, vencedores e derrotados. O eu-tu, no fundo, é o nós.

[1] Marcel,Gabriel. Diário Metafísico. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1969, p.193-217

[2]Marcel,Gabriel. El Mistério del Ser. Buenos Aires, Ed. Sudamericana, 1951, p.81