Quarto Desarrumado

"Esta crônica é dedicada às mulheres capazes de fazer um homem descobrir as próprias forças"

Tenho certas manias que alguns amigos acham estranhas. Não uso blusas de frio, pelo quê me imaginam exibido; ainda acendo cigarros de amigas, pelo quê alguns me vêem galanteador; nunca coloco nada no bolso das camisas que, aliás, são sempre de mangas compridas, pelo quê me julgam excêntrico. São trejeitos idiossincrásicos de uma personalidade rebelde que não quis usar violência ou drogas como forma de exposição, expressão e pressão. Gosto de dois fatos aparentemente banais que todos, se tivessem tempo e chance de presenciar, gostariam também, tenho certeza: observar uma criança dormindo e uma mulher grávida. Penso mesmo que tais imagens são bem a conscientização das notórias necessidades mais latentes da vida: o descanso e o trabalho. A vida trabalha no corpo de uma mulher grávida e descansa na tranqüilidade de uma criança que dorme.

Bem, isso são fatos pessoais, mas não íntimos. Uma coisa que raríssimos amigos sabem que gosto, e quando o souberem, aí, sim, não terão adjetivos para mim, é ver uma quarto desarrumado.

Vejam... não um quarto sujo com roupas sujas e tapete empoeirado. Mas um quarto simplesmente desarrumado. Acho charmoso pela imagem que produz e sensual pela idéia que emana de que ali, minutos antes, enormes e eternos minutos antes, dois corpos houveram por bem trocar sensações de toda uma vida. A cama desfeita às pressas, com seus lençóis em desalinho, descrevendo o descontrole emocional dos corpos; a calcinha enrolada em si mesma e jogada ao chão, mostrando a veemência de necessidades; as meias falando descaradas sobre os caminhos trilhados para se chegar até ali; os robes mal postos no chão, comentando em silêncios que dentro deles havia uma profusão desbravada de células e nervos à cata, muitas vezes insana, de sonhos sonhados por dias inteiros de incertezas; as calças descansando na poltrona depois de anos de luta contra as próprias dúvidas sobre virilidade; o sutiã antes teimoso, agora cúmplice e pensativo; a porta aberta do guarda-roupas mostrando o interior e a falta de tempo para arrumá-lo; o vértice do tapete dobrado, dizendo que algo fora deixado para depois em prol de outro algo mais importante; cortinas não por todo cerradas deixando entrever o horizonte a ser perseguido depois das energias revigoradas; o travesseiro no meio da cama como brinquedo num play-ground imenso para apenas dois; o vidro de perfume aberto, deitado ao chão, gotejando fragrâncias que buscam sobrepôr o cheiro animal dos corpos suados ainda impregnando o ambiente; a camisa máscula que cobria tórax másculo ou não, agora simples expectante de cenas únicas, por mais que repetidas ao longo dos séculos; a camisola transparente que antes brincava de esconder tesouros, agora inerte meio sob a cama, relembrando envergonhada as cenas desavergonhadas que vira sobre ela; se houver um quadro na parede, deverá estar fora de prumo por causa do toque das mãos em movimentos incertos no momento supremo da chegada autoritária e intransigente das sensações eternamente desconhecidas das explosões interiores; se o lâmpada for em penduricalho, terá ido e voltado, ido e voltado, tocada pela peça de roupa tirada às pressas e jogada no ar do quarto e terá feito concomitantes os movimentos das sombras de todos os móveis do quarto com o movimento de ir e vir das almas; se houver bichinhos de pelúcia sobre a penteadeira, presença infantil de personalidades adultas que, nos momentos do ferver dos sangues voltam a ser crianças, deverão ter estado rindo da brincadeira presenciada.

Um quarto arrumado pode não significar que antes não houvera a mais salutar das guerras humanas, mas um quarto desarrumado definitivamente significa que houve e, por isso, fala mais da presença humana e seus interiores, seus conflitos e seus desejos, suas sensações e suas buscas. É num quarto desarrumado que provavelmente a vida estará se encarregando de se multiplicar e fazer seguir a linha da autopreservação e autoconservação. É num quarto desarrumado que células e nervos darão origem a células e nervos, que corpos descompostos darão vida a corpos descompostos, que sussurros em ouvidos abertos serão como que gritos jogados no infinito do cosmo, ainda que em eternas promessas de eternos reinícios.

Num quarto desarrumado nada e ninguém têm noção de nada e de ninguém e conhece-se um ao outro sem palavras fatais. É uma enorme célula desgarrada do tecido, um cômodo desenhado à parte de outros cômodos na prancheta do arquiteto, um vácuo sideral no cosmo indefinido, uma redoma que deixa fora sentimentos pobres, por mais sentimentos pobres que tenham tentado entrar. É um antídoto a qualquer mal. É uma praça da mais bela, poderosa e destruidora guerra de que se tem notícia. É onde o homem se resume em alguns centímetros e a mulher em uma entrega crucial de seus mundos e aqueles centímetros são o todo necessário para aqueles mundos, nenhum micron a mais nem a menos.

A frieza da praticidade perde força diante da descompostura de um quarto desarrumado e o status, antes tão propalado, se envergonha perante a nobreza do instante. A masculinidade grita em descontrole e a feminilidade se mostra máscula na tentativa de proteger aquela. O que antes era altamente primordial não passa de supérfluo e o supérfluo passa a ser estranhamente primordial. Ali, produzem-se encaixes que pareciam impossíveis, sincronizam-se sons antes dissonantes, trazem-se à flor da pele âmagos por muito tempo amarrados nas camadas mais entranhadas na alma humana, fazem-se ver imagens antes dispersivas das provocações pessoais, provocam-se gestos desconhecidos do rol de gestos normais.

Um quarto desarrumado desarranja os interiores mais profundos do ser humano e os torna seres completamente desligados do grande mar de sensações diversas que é a vida, conquanto é nele que o ser humano se descobre plenamente consciente da carência de suas próprias emoções como elo indestrutível entre si e seu próprio futuro.

Serg Smigg
Enviado por Serg Smigg em 16/11/2006
Código do texto: T292589