Rock in Rio e samba

O que o Rio espera do samba?

E do rock? E do Rock in Rio?

Viva o Rock in Rio.

Um amigo meu, professor e historiador, carioca, tijucano, especialista em História do Brasil Republicano e também em contracultura musical – e não posso citar o nome dele a fim de protegê-lo de possíveis retaliações ressentidas de alguns fascistas provincianos moradores de nosso balneário chamado Rio de Janeiro –, me disse certa vez que a Meca do rock e da música alternativa é São Paulo, e que é lá o lugar onde a música acontece. Acrescentou ainda – acho que sem trocar de assunto – que as mulheres paulistanas são as mais interessantes e bonitas. Sobre este seu adendo eu não tenho muito a dizer, e não me atreveria se tivesse. Com sua primeira proposição eu posso concordar. O fato é que o Rio perdeu para São Paulo, há muito tempo, na categoria “diversidade cultural”. Resta-lhe somente um status de capital cultural do Brasil, remanescente da época em que ele era realmente um local de efervescência neste aspecto. Resquícios do tempo de capital do Império luso-brasileiro?

Como o assunto aqui é música, uma das provas de que o Rio “perdeu o rock” são os mega-shows das turnês de grandes artistas do gênero, que, em várias ocasiões, tocam em São Paulo e não aqui, o que já se tornou rotina. A esperança carioca é que o Rock in Rio resgate o rock para a cidade, salvando-nos dessa incômoda segunda posição. Segunda? Que nada. Já dá pra saber que Porto Alegre, Curitiba, Recife e Belo Horizonte são mais roqueiras que o Rio, além de darem mais espaço a um maior número de estilos musicais. Quanto à música alternativa de maneira geral, basta comparar numericamente as duas maiores capitais: um número bem maior que o carioca é o de boas novidades vindas de São Paulo – sejam paulistanos ou que estejam usando SP como sua vitrine. Aliás, o novo Rock in Rio contará artistas vindos de São Paulo, ainda bem. Ouvir-se-á gente cantando com sotaque paulistano na Barra da Tijuca, no maior festival musical planeta. Como isso pode ser importante como reparador do regionalismo cultural radical que nos assola... E o público carioca é eclético. Nosso povo é tradicionalmente acolhedor de culturas. Os gestores culturais, de grande, médio e pequeno porte é que precisam estar mais atentos a isso, dando um “xô” a qualquer tipo de regionalismo xiita, o que só empobrece a vida cultural da cidade. Todos sabem que o Rio é a cidade do samba, sendo completamente desnecessário reforçar isso, à guisa de “consolidação de nossa identidade cultural”. Mas... O que o Rio fez nos últimos 15 anos? Mergulhou no poço sem fundo do próprio umbigo sambista. Samba, sim, tem pra tudo que é lado da cidade maravilha. O Rio, berço do samba, segundo alguns, mais me parece um tipo de túmulo do samba (parafraseando Caetano, que um dia chamou São Paulo disso). Um tipo de jazigo perpétuo do samba. Ou um enorme congelador mortuário, onde o próprio samba está petrificado. Os fãs (como eu sou admirador) de Paulinho da Viola esquecem que ele um dia foi novo – com todo o respeito que ele sempre teve pela velha guarda. Paulinho apresentava algo inovador, e por isso despontou no cenário musical daquela época. Quem disse que respeitar os antigos significa reproduzi-los eternamente? Pois é isso o que se tem percebido demasiadamente no Rio – não que boas iniciativas estéticas sejam hoje totalmente inexistentes na cidade de Paulinho. Só que é pouco. Agora... Samba de raiz... Meu Deus do céu. Sejamos mais cuidadosos com isso. Vamos parar com esse negócio de querermos ser raiz, e, muito mais do que isso, pensemos na possibilidade de sermos frutos coloridos, de sabores variados, quem sabe com bem sucedidos cruzamentos genéticos. Às vezes dá-se a impressão de que o carioca usa o samba como um tipo de escudo protetor contra as bárbaras invasões do estrangeiro.

Uma outra amiga minha, cantora de barzinho – boa e estilosa –, reclamou comigo sobre a dificuldade em cantar hoje em dia no Rio em bares razoavelmente badalados se o repertório não for samba. E ela é mais familiarizada com o pop-rock. Perguntei a uma professora carioca – pessoa muito culta e chique – sobre o que ela ouve, ao que me respondeu, sumariamente: samba. Eu pensei: “como assim? só samba?” Pedi misericórdia a Deus. E os deuses, como se sabe, são roqueiros. Ou alguém já ouviu falar em Deus do Samba? Mas não acho nada de engraçado nas divinizações de todo tipo. Ninguém é deus de nada. Cada artista é especial. Reconheço, contudo, o importante papel dos grandes nomes da música, como incentivadores da arte e da criação. Grandes astros da música são geradores de empatia coletiva.

Sobre ser o Rio uma cidade de invenções musicais, podemos pensar que o samba é “patrimônio” nosso, nascido da mistura da cultura musical popular negra das periferias da capital com a influência dos músicos e poetas brancos que flutuavam ao redor da elite carioca já às vésperas da República. Os dois grupos sociais se encontravam para momentos de diversão e arte, no fértil húmus criativo e gerador daqueles tempos. Também no Rio, inventamos depois a Escola de Samba. Ainda reformulamos o samba, muitas décadas mais tarde com o advento da bossa nova – algo que, segundo João Gilberto, não existe e nunca existiu. Pois bem, os cariocas inventaram este grande patrimônio cultural do Brasil que é o samba – apesar dos baianos pleitearem a patente. Mas não se pode dizer que nos mantivemos sempre na ponta de lança da cultura nacional. Só pra ficar no assunto música, é importante lembrar que a Tropicália, ao fim dos anos 60, foi feita por baianos e paulistas – “baseados” em São Paulo; que os maiores roqueiros brasileiros dos anos 70 foram um baiano e uma paulista (Raul Seixas e Rita Lee); que o poderoso movimento musical dos anos 80 que conhecemos como BRock, foi, se pensarmos bem, encabeçado por bandas de Brasília e São Paulo. Bem. É claro que precisamos lembrar que tais bandas tiveram suas carreiras impulsionadas e/ou estimuladas pelo primeiro Rock in Rio, de 1985, o grande catalisador do movimento do rock nacional. O Rock in Rio de 85 veio “cimentar” o rock no Brasil. Os corações da juventude brasileira estariam desta forma, definitivamente abertos a novas experiências sonoras.

Respeitemos, admiremos e degustemos, amigos cariocas, nosso samba, que, entre outras coisas, é um forte artigo de exportação de nossa imagem cultural – e a bossa nova e as escolas de samba abriram caminho para isso. Mas celebremos, porque não, a maior e mais libertária música mundial, que é o rock, com todas as suas infinitas variações e possibilidades. O rock, que se mostra como uma espécie de patrimônio musical da humanidade. Desde os anos 60 a música brasileira está impregnada de rock – mesmo entre os ritmos “regionais”. Não trata-se mais de uma invasão cultural estrangeira, e, sim, de uma realidade cultural brasileira. Toda cultura existente não seria, afinal, uma associação de culturas?

Esperamos que o grande festival a ser realizado em setembro deste ano traga-nos sopros de alegria e criatividade, que são as coisas que mais importam. Viva a música do mundo. Viva o acolhedor povo do Rio de Janeiro, terra do samba e do rock. Viva o Rock in Rio.

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