No camburão

Final de semana conturbado! Tempos muito difíceis aqueles. Longe ainda das férias, meu marido teve que viajar até a nossa sempre amada São Paulo para uma tarefa complicada, tensa, angustiosa: minha sogra internada, com a saúde muito debilitada, requeria mais e mais cuidados.

Permaneci com o meu filho em Florianópolis, minha segunda casa, na tentativa de continuar levando a vida na suposta naturalidade, embora com medo das respostas da equipe médica.

A cada telefonema, mais apreensão.

E naquele domingo, no meio de um feriadão, como de costume, peguei o carro e fomos, me filho e eu, almoçar na casa da minha mãe, afinal é sempre bom resistir às situações difíceis, pois aprendi muito com a família do meu marido que não se deve sucumbir às dores. Sempre há lugar para boas conversas e troca de abraços e de esperanças. Quem sabe, uma preparação de aceitação do inevitável, daquilo que não se pode mudar.

Mas no caminho... ora, eu sou motorista de mais de três décadas, já passei por apuros... mas no caminho... Carro novo, mas não sei o que houve: PEC PEC PEC . Eu nem imaginava o que seria. Próximo existia um posto policial e resolvi, humildemente, pedir socorro. Expliquei que eu não entendia nada de mecânica e em saberia o que fazer para chegar à casa da mãe. Fui muito bem atendida e os guardas começaram a me explicar mil coisas sobre funcionamento do motor. Com detalhes técnicos, e eu continuava a não entender nada, neca e dulcineca e nem sabia qual mecânico poderia chamar, o que dizer, e eu nunca havia sequer acionado o seguro.

De tão perdida, os guardas se apiedaram e resolveram me levar até a casa da minha mãe . Confesso que fiquei agradecida, sem sabe o que faria com o carro que havia me deixado na mão. Mas o pior aconteceu. Disseram “entra” e nós entramos. Era um CAMBURÃO!!! Eu perguntei: “mas aqui????’ A resposta veio rápida e objetiva: “é”.

Parece que, repentinamente, o mundo inteiro deu voltas. Como? Andar num camburão? O meu filho ficou pálido e mudo. Eu, no mínimo, desesperada. E fiquei pensando se algum aluno me visse naquela situação, como seria a minha vida doravante? Como enfrentaria os olhares desconfiados? Os comentários, as suspeitas, o “eu bem que sabia que a professora era comunista, mas comunista hoje não vai mais em cana. Então, o que será que ela fez?” Comecei a sentir calores e calafrios alternados, quer dizer, eu nem sei se alternados, mas eu sentia uma coisa indescritível, nauseante. O ar não circula lá dentro porque existe, claro, uma proteção de ferro entre os guardas e os meliantes. Obviamente as janelas são lacradas e o suor começou a querer escorrer.

O meu filho , já moço, murmurava um sofrido “mãããããe”. E eu suspirava sofregamente um “ai meu Deus”.

Chegamos à casa da mãe. Do prédio, uma vizinha contemplava a paisagem a partir da sacada e se debruçou ainda mais, de boca aberta, ao nos ver chegando nessa situação. Preferi abaixar a cabeça. E no meio às gentilezas, o guarda resolveu pedir prá usar o telefone da casa da mãe para tentar localizar para mim algum mecânico. Isso quer dizer: ele ainda entrou fardado e tudo no apartamento, provocando ainda mais a curiosidade de alguma vizinha com pouca coisa para fazer.

Sou grata à consideração deles, mas nunca a vergonha havia me batido com tanta força! A vergonha entrou no mais profundo de minh’alma, lancinante, ardente. Meu filho e eu poderíamos passar por elementos fora da lei, pessoas de alta periculosidade, quem sabe ameaçados de linxamento por uma eventual cumplicidade com o tráfico, aliciamento de menores, roubo de carros, assaltos a bancos, seqüestro de velhinhos...

Que nenhum carro que me dê mais problemas, pelo menos enquanto o meu marido estiver viajando, porque camburão de novo, eu, hein?

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 06/05/2011
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