MINHA MÃE ERA BONITA...

Minha mãe foi uma das mulheres mais bonitas que conheci. Moreno-claro, rosto ligeiramente redondo, cabelos negros e anelados, de estatura mediana, nem gorda nem magra. Chamava-se Maria, como tantas Marias mundo afora, mas tratada por Cotinha. Nos poucos retratos restados, onde aparece – explico adiante – estes detalhes se confirmam. Dela herdei traços na alma e no coração somente, porque de embalagem sou bem piorzinho!

Era bastante religiosa, sem chegar a carola. Frequentava novenas, procissões, missas... Entre suas devoções estava Nossa Senhora do Pepétuo Socorro e o Anjo da Guarda. Pela criação, convívio e necessidade - quem sabe o fato de desbancarem as chamadas inteligências lógicas -, a estes espíritos que comungam da presença de Deus, igualmente me apeguei e invoco nos momentos tormentosos. Foi minha catequista e com ela aprendi rezar: “Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou a piedade divina: sempre me rege, guarda, governa, e ilumina. Amém!”

Era, outrossim, um pouquinho mística, porém não supersticiosa. Todos nós acabamos sendo, em certa medida. Acreditava, pro exemplo, que o número vinte e três guardava íntima relação com o seu destino. Nascera em 23 de novembro de 1923; casou-se aos 23 anos, no dia 23 de fevereiro de 1946 (46:2= 23)... viveu com meu pai, até o falecimento deste. Olhando para os dois juntos, era difícil imaginar que passariam mais que um final de semana lado a lado, tão diferentes! Há quem explique o amor? Bem se diz que os opostos se atraem. Meu pai tocava violão, gostava de bailes, festas, com ele não havia tempo ruim! Mamãe, que eu saiba, jamais pisou num salão de dança, era reservada, e se cantava, eram quando muito músicas religiosas...

Não faço pouco nem desacredito que o amor tenha de fato razões, que nossa pobre razão desconheça! E que este mesmo amor enverede por caminhos trilhados apenas por cada um, não ouso contestar! Por profissão meu pai era motorista. Quando se conheceram ele dirigia um caminhão, de certa indústria de manteiga, fazendo frete de creme nas fazendas, inclusive de meu avô materno. Precavido, como todo coronel-fazendeiro, o velho tratou logo de jogar água naquela fervura, mandando plantar um canavial na frente da janela da cozinha de casa: que era de onde a filha ‘namorava’ o futuro genro... Astuciosa, crescida a plantação, minha mãe deu um jeito de quebrar o canavial, daí continuando o namoro, à distância com o caminhoneiro, que chegando, ainda de longe buzinava do veículo... A implicância do velho se dava mais pelo dito em voga: “Homem com cheiro de gasolina, em cada fazenda namora uma menina!”

Uma coisa de que mamãe gostava era de plantas. Nossa casa, apesar de modesta, parecia um jardim. Por outro lado, detestava bichos. Certa vez, meu irmão caçula chegou da rua trazendo uma cachorra na ponta da corda. Foi ele, ao outro dia, sair pra escola que ela mais uma vez esperta, arranhou o chão com um garfo, simulando unhadas da cadela fugindo... que meu pai soltou do outro lado da cidade!

Dizia não gostar de ser fotografada mas, curiosamente, em casa mantinha três dessas caixas de sapatos, abarrotadas de retratos da família. Chegando visitas, lá se ia ela, pegar a retratama e com gosto e humor, para de cada foto contava uma estória particular. No fim da vida, contudo, sem dizer nada a ninguém, tomou das fotografias e queimou todas! O poeta Junqueira Freire escreveu: “Minha mãe era muito bela, eu me lembro tanto dela, de tudo quanto era seu!... Minha mãe era bonita, era toda minha dita, era tudo e tudo meu...”

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 09/05/2011
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