DESPEDIDA DA VIDA

Eu sei que o assunto é mórbido, mas após assistir uma cerimônia de cremação decidi registrar o que não quero para o meu final de vida, afinal, como vocês vão saber o que eu quero se eu morrer? Estaremos sem comunicação e agora que Chico Xavier morreu a coisa complicou, pois perdemos a comunicação via psicografia.

Preciso avisá-los sobre alguns detalhes e espero sinceramente que demore muito para que utilizem isso. Estive pesquisando sobre o modelo de como seria a minha urna, pois ninguém vai ter cabeça para isso e podem me colocar no modelo golfinhos ou até mesmo a caixinha roxa cafonérrima que o crematório disponibiliza. Pensei nas caixas douradas, tem tudo a ver comigo. Mas quando vi a caixa ecológica com ideogramas com mantras decidi que é ali que um dia eu gostaria de passear.

Sim, passear. Pois não sou de fixar-me muito tempo num lugar só e, portanto a urna só servirá como meio de transporte até o mar. Podem me atirar nas águas para que me integre a natureza e minhas cinzas dividam-se por todas as partes do mundo. Livre, sem ficar presa a lugar nenhum. Estarei por aí. Em qualquer lugar. Estarei no melhor lugar, minhas cinzas serão apenas resquícios de um corpo que um dia usei para fazer a vida valer à pena. Uma casca. Uma ferramenta para extrair do mundo momentos de aprendizado, felicidade e evolução. Aliás, manifesto meu desejo de doar meus órgãos, pois não servirão para nada depois que virarem cinzas e assim pelo menos eu ajudo algumas pessoas a prolongarem suas vidas. Isso evita que o caixão fique aberto, que é outra coisa que não quero. Nada de lembrarem de mim com cara de morta. Isso acabaria comigo... Quer dizer... Bem... Deixa pra lá.

Meu desejo é que misturem junto às cinzas um pouco de purpurina dourada, pois acho que o cinza não combina com a minha personalidade. Preciso brilhar. Preciso que minha morte tenha a ver com a minha vida e não gosto de nada sem graça. Quero que seja cumprido como um ritual de passagem, o final de uma etapa, onde me despeço de uma vida para entrar em outra totalmente desconhecida.

Dispenso qualquer tipo de música, por favor. Música combina com celebração e apesar de eu ser alegre ninguém precisa comemorar a minha morte. Permito que fiquem tristes, que sintam saudades das minhas palhaçadas e que tirem ensinamentos da quantidade de cabeçadas que dei e que ainda vou dar na minha vida, pois sou adepta da frase: “Durmo arrependida, mas não acordo com vontade” e isso às vezes não é bom. Permito que lembrem de mim com o mesmo carinho e amor com que foram tratados e que em hipótese alguma coloquem a música “Conquest of paradise” do Vangelis, muito menos Aleluia de Mozart no momento em que o caixão estiver entrando no compartimento de cremação.

Assunto estranho esse. Mas importante refletir sobre isso ainda mais quando saímos de uma cremação surreal cheia de músicas e momentos estranhos. Parecia que estava entrando num universo paralelo, com pessoas vestidas de terno sorrindo para mim com um folder na mão dizendo: Essa é minha escolha, adquira hoje mesmo o seu plano de cremação plus em 24x. Do outro lado, um corpo ali na minha frente que um dia foi cheio de vida. Cheio de histórias e glórias. Sonhos. Desejos. Planos. Um corpo que um dia teve vida. Um corpo que deixa para trás uma família que sofre de saudades. Um corpo que se reduz a pó em questão de algumas horas. A pessoa não está mais ali. Já não sofre mais. Não decide mais nada sobre o que realmente gostaria para o seu adeus.

Todos nós sabemos que vamos partir um dia e mesmo assim porque é tão difícil falar nisso? Não queremos saber de falar em morte, pois só de imaginarmos algumas situações sofremos por antecipação.

Mas ali, naquela cerimônia de despedida, me peguei pensando no que eu queria para mim. Não como algo macabro que não convém nem pronunciar, mas como um registro de que gostaria que meu adeus fosse através da poesia, minhas cinzas jogadas ao mar simbolizando a liberdade e a coragem que sempre conduzi minha vida. Nada de cultos a uma fotografia mórbida numa lápide empoeirada. Quero lembranças da minha melhor gargalhada. Quero que meus filhos possam sorrir ao olhar para a mais brilhante estrela no céu e brincar que estão sorrindo para mim.

Não tenho medo da morte, tenho medo de perder quem eu amo. Um dia todos nós morreremos. Tomara que seja bem velhinhos enquanto dormimos. Não quero tijolos e cimento mantendo meu corpo sepultado num lugar qualquer, não quero ser enterrada e saber que meus familiares ficarão assistindo a cena terrível de um monte de terra manter para sempre meu corpo preso ali. Quero ser cremada, transformada em cinzas. Que esse dia demore a chegar, mas que fique claro que minha vontade é poder voar, jogada ao vento, em alto mar.

Renata Miranda
Enviado por Renata Miranda em 09/05/2011
Código do texto: T2959149
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.