Perda

A dor da perda

Já deveria ter começado escrever – mas esqueço – dentro das novas regras da ortografia portuguesa. Doravante, os leitores de Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, São Tomé, Príncipe, Galiza, Timor-Leste e Portugal poderão ler os brasileiros sem problema algum e vice-versa.

Não que eu seja implicante, mas acho que continuarão sem entender a literatura de cordel dos pernambucanos e menos ainda o regionalismo lírico de Guimarães Rosa.

Não que eu seja (muito) implicante, mas ressabiado com a reforma ortográfica, prometi a São Benedito nunca mais comer linguiça sem trema... e que trema cada um dos meus raros leitores. Desconfio que linguiça sem trema não contêm toicinho, a tripa é sintética (de plástico, penso) mista, com maior porcentagem de carne de vaca, e sem sal. Ora, é óbvio que o trema untava a lingüiça (perceba como ele a enfeita) e os dois pontinhos em cada extremidade do u pareciam as duas mãos fechadas da lingüiceira a amassar e misturar a carne de porco ao alho, à banha e ao aroma de seus dedos escorregadios. Como são belas as mãos das lingüiceiras. Além disso, o trema dava sustentação ao u impedindo-o de levitar ou pender para qualquer dos lados (assim como nós mineiros fazemos em política), desvio que poderia estragar a lingüiça. Anatomicamente o trema conferia graça ao u parecendo dois olhinhos sobre uma boca sorridente. A reforma ortográfica, portanto, sepultando definitivamente o trema, acabou deixando este texto, que eu pretendia lângüido, lânguido.

A supressão do acento agudo em alguns vocábulos não foi tão grave, mas jibóia perdeu sua presa com que subjugava suas vítimas e assim “jiboia”, banguela, virou minhocão, sem perigo algum. Além disso, o O aberto, acentuado, libertino, regateiro e escandaloso conferia terror às jiboias fazendo lembrar o tipo de mulher que apreciamos, desde que não seja a nossa. Ideia deixou de ser uma boa idéia, pois perdeu o raiozinho que a iluminava, como no balão das charges. Tem mais: ideia, sem acento, é retartada.

A dor da perda do circunflexo, além de aguda, foi grave. Pois era esta coifa que sugava o vôo e o mantinha planando. Sem ele é até perigoso passarinho beija-flor cair, que dizer de avião. Sem o chapeuzinho, os que creem, tornar-se-ão ateus, os que leem, analfabetos e, os que veem, poderão ficar cegos. Deem a eles três chances para que voltem a ser bem comportados, devolvendo-lhes o telhado circunflexo. Para falar bem claramente, suprimir o circunflexo onde ele tinha papel de importância (notou?) é o mesmo que remover dos olhos da Giselle Bündchen as sobrancelhas. Dá pra encarar?

A crase, que poderia estar com o prazo de validade vencido, permaneceu.Tudo bem: não cheira nem fede. Pouquíssimo usada, e só corretamente pelos filólogos e gramáticos, não faria falta, caso desaparecesse, pois tê-la à mão ou a mão, c´est la même chose, ou seja, dá para entender.

Quanto ao hífen, o bicho pegou. A bagunça foi generalizada. Somente uma coisa me preocupa: se o retiraram do curto-circuito, você deve estar tomando, agora, (calma!) um bruta choque.

Enfim, a prova de que não sou tão implicante assim, está aqui no computador, que a cada acento suprimido, ele me corrige grifando (a mim, seu dono) em vermelho, a ausência sentida. Aceitaria o grifo em preto. Luto!

Ah! A Academia Brasileira de Letras acaba de lançar o Dicionário da Língua Portuguesa com a nova ortografia, completíssimo, um primor. Agora só falta alfabetizar a moçada...