CONTATOS - CRÔNICAS HISTÓRICAS

CONTATOS

Acordei aquele dia com o cantar dos uirapurus. Eles cantavam bonito no alto da serra e em bando. Era um canto conjunto, parecia um aviso. Era um canto triste, apesar de belo. Era sempre assim. Os pássaros exibem sua liberdade e cantam despreocupadamente. Eu, de vez em quando fico cismado com esse canto. Mas havia algo diferente no ar. A natureza parecia conspirar contra o mundo. Pulei da minha rede e observei ao redor. Todo mundo dormindo, sonhando, tranqüilamente. Meu coração naquele dia palpitava, acelerado, impedindo-me de continuar meu sono. Durante a noite fui atormentado por sonhos terríveis. Vi muito fogo, e a água do rio corria vermelha, intensa, copiosamente como num mês de chuvas torrenciais. Levantei-me e fui até o riacho tomar um banho. Estava muito quente, ou pelo menos eu sentia um forte calor. Parece que Tupã me chamava para dentro da floresta. Sentia um arrepio pelo corpo e um odor de morte e sofrimento por todo o lado. Era uma sensação que sentia com alguma raridade, mas que de vez em quando vinha, e era quase sempre acompanhada de uma morte na tribo. A tribo ainda estava adormecida. O sol, mal tinha acabado de chegar e eu fui dando passos pela floresta, num ponto onde há alguns anos, nossos antepassados contavam que havia visto gente branca e vestida pela primeira vez. Meu avô contava como foi que os tupi-guaranis os viram na praia. Eram estranhos, fediam, usavam roupas por todo o corpo e tinham barba. Pareciam amigáveis, trocaram presentes e gentilezas e foram-se após alguns dias. Vieram muitos outros depois, forçaram os nativos ao trabalho escravo. Eu mesmo já os vi várias vezes. Constroem umas fortalezas e começam a explorar a madeira, carregando grandes embarcações que as levam mar adentro. Eles não me parecem nada amigos. Minha nação tupinambá não aceitou a submissão. Nunca. Fugimos, guerreamos, mas resistimos. Nossa tribo apesar de próxima de suas construções ainda está bem isolada por um grande rio e uma boa quantidade de montanhas. Mas sabemos que uma hora será insustentável ficarmos por aqui. Eles chegarão.

Enquanto caminhava pela floresta, subi num ponto mais alto quando, por entre as folhas das árvores ouvi gemidos de dor e gritos. Observei, sozinho e impotente que estava. Não carregava nenhuma flecha naquela hora e nada mais naquele instante eu podia fazer. Eram os tupiniquins. Eles viviam de amizade com esses portugueses e agora sofriam as consequências. Isso não me faz, entretanto, conformado com o que vi. São gente como eu e esses portugueses nos maltratam como se fôssemos animais selvagens. Aquele dia mudou minha vida. Vi homens portugueses levando índios para escravidão. Estavam amarrados ao pescoço por uma corda comprida. Passava-se um laço no pescoço do primeiro que ia sendo puxado brutalmente, e do seu pescoço a corda passava ao pescoço do outro e do outro sucessivamente. Contei, primeira corda, dezessete índios. Atrás deste grupo, vinha um outro com crianças capturadas, que choravam incessantemente. Ao menor sinal de rebeldia, eram torturados ou mortos por armas de fogo. Freqüentemente ouvíamos histórias de mortes, de massacres e de homens que agrupam índios ao redor de algumas casas e os ensinam a cantar música de branco e a rezar reza de português. Fiquei ali contemplando tal atrocidade. Crianças choravam e provavelmente estavam separados de seus pais. Pelos pescoços dos prisioneiros corria o sangue que é de todos nós.

De volta à tribo, fiquei observando a vida que começava. Mulheres com seus filhos indo ao riacho tomar banho, outros saindo para cuidar de suas vidas e ainda a meninada brincando no quintal da aldeia. Chamei o grupo dos mais velhos e relatei o que vi. Havíamos ouvido essas histórias, mas elas pareciam distantes de nós, e agora estava acontecendo ali, em nosso quintal. Resolvemos agir. Nunca fui homem de abaixar a cabeça, e aquilo mexeu comigo. Senti uma raiva interior, que cheguei a estourar uma pedra em minha mão, para não me jogar em cima daqueles brutos e também ser capturado. Para um guerreiro como eu, era quase como uma confissão de covardia não reagir. Mas tive que racionar. Ser intempestivo não iria melhorar nada. Unimo-nos a outros grupos indígenas e fomos os primeiros a rebelar-nos contra a preagem. Para eles eu sou um monstro canibal. Para meus irmãos eu virei um salvador. Mas sou apenas um índio tupinambá, corajoso por natureza e sensível à selvageria com que fomos tratados. Sou apenas o Cunhambebe, cacique de Ubatuba , nada mais.

Foi bonito. Muitos de nós morremos nestas batalhas. Não conseguimos acabar com a escravidão, nem com a preagem. Mas mostramos nossa força. Fomos mais de dez mil lutando, e durante um ano, não houve judiação. Manuel de Nóbrega e Anchieta firmaram um acordo de paz que libertou muitos escravos, mas durou pouco. Mas passamos a ser mais respeitados.

Na tribo hoje amanheceu chovendo muito. Escuto os uirapurus cantando de novo, me acordando mais cedo do que o de costume. Ponho-me a caminhar em direção ao riacho, que me traz as recordações daquele dia em que vi o inferno diante de mim. Novamente choro. Mas a batalha agora é invisível. Não vejo o inimigo. Vejo apenas morrerem com manchas vermelhas no corpo e eu mesmo estou doente. Nossos remédios não estão mais adiantando. Essa praga está matando todos nós. Contra essa doença não estamos prontos para lutar. Existe um inimigo que não conseguimos descobrir. Vai ser difícil, como está sendo difícil ver os amigos e irmãos morrerem com a garganta seca pedindo misericórdia. Dói muito quando um irmão se vai. Tupã nos abençoe, nos proteja, e afaste de nós esta peste dos brancos.

Voltei para a aldeia e sentia-me muito mal. Os uirapurus cantaram a noite toda. A lua brilhava mais que o normal nesta noite e parecia aproximar-se de nós. Tinha a sensação de que ela viria nos buscar. Parei um pouco a admira-la e me perdi na imaginação. Sinto que hoje me despeço do mundo, mas como um herói, como o primeiro a lutar contra tanta injustiça com nossos irmãos. Mas não sou um herói sozinho. Meu povo e eu nunca nos rendemos, nem conhecemos a covardia. Tivemos sempre a coragem dos justos e o medo dos previdentes. Vou pra rede, preciso dormir, pra ver se acordo amanhã para mais um dia de luta, tentando acabar com essa praga que está dizimando todos nós. Faremos um pedido especial para que Tupã ouça nosso apelo. Vou escutando ao longe o canto dos pássaros enquanto minhas pálpebras insistem em se fecharem. Ouvindo o presságio do tempo, adormeci.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 11/05/2011
Código do texto: T2963140
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