O Estranho Jardim de Eugênio Cardin

A última vez que estive com o bom amigo Eugênio, no jardim, ele alimentava uns animais que, pelo que entendi, fugiram de um circo, na verdade uma trama armada pelo inescrupuloso proprietário que, estando em sérias dificuldades financeiras, articulara a suposta fuga, sabendo que alguém tolo e de bom coração, como meu dileto amigo, trataria de recolhê-los com amor, enquanto ele, o desonesto empresário circense, fugiria sorrateiro para além da fronteira. Bem, não sei se foi isso que realmente sucedeu, o certo, entretanto, é que meu amigo ali estava, diariamente a alimentar umas boas duas dezenas de variados animais, de ratos a leões. Bem, ratos, gatos e outros animais domésticos, creio que não eram provenientes do tal circo, mas, ao verem aquele movimento diário, no jardim, ao sentirem o ar protetor do meu amigo, acabavam sendo atraídos, juntando-se ao feliz bando de fugitivos, e assim, leões, tigres, focas e, ratos e gatos urbanos reuniam-se diariamente enquanto degustavam bromélias, folhas de fícus, queijo de coalho, perfumes de todos os tipos, brotos de bambu, sistruns sonoros e dourados, alcaparras e azáleas, entre partituras as mais variadas, inclusive de J.W. Wolf, se é que este grande compositor, notório por suas composições anônimas, tenha realmente composto algo durante sua curta e frugal existência.

Este farto banquete era servido todo santo dia, invariavelmente, quer chovesse, nevasse, fizesse sol, ou mesmo, fosse o jardim invadido por devastador tsunami... Nada impedia meu amigo de servir, benevolente, deliciosos copos-de-leite de muito fino cristal, com textura opaca e de uma cor arroxeada e muito, muito pálida, recheados de finíssimos crisântemos purpúreos a exalar suave fragrância de manteiga da terra; Cheiro de úberes caprinos... Cheiro delicioso de fezes bovinas deixadas no pasto!

As uvas? Ah, nem se fala... Verdes, roxas, azuis, vermelhas, todas tão completamente translúcidas; Todas tão magnificamente adocicadas... Embriagavam-nos a cada mordida. A cada mordida emitiam uma singela frase melódica; Alguns compassos de doce melodia ecoavam; Alguns compassos ostentavam belo contraponto; Alguns compassos, complexa harmonia emitiam. Sim, bastava que déssemos uma pequena mordida, ou, que as engolíssemos inteiras, e, logo uma divina melodia invadia nosso ser animal; Nosso ser selvagem; Nosso ser divino. A água que bebíamos jorrava de fonte cristalina bem no centro do jardim, todos tinham acesso a ela e, ao sorvê-la viajávamos, como se arrebatados de súbito para plagas longínquas. Às vezes, nos dias de calor intenso, o parque ficava deserto, ora, nessas temperaturas elevadas os animais bebiam água com muita sofreguidão, o que os transportava a distâncias cósmicas insondáveis, e nessas viagens permaneciam por milênios... O bom Eugênio Cardin, nesses dias milenares, sentia-se, naturalmente só e, assim sem companhia, distraía-se em afazeres os mais simples, tolos e esdrúxulos: Passava, por exemplo, horas e horas empenhado na difração da luz, com isso pintava o parque ora de azul, ora de roxo... Passava horas a fio pondo laranjas ao avesso. Bem, como as laranjas têm os gomos e sementes para fora, Eugênio punha-os para dentro enquanto a casca era trazida para fora, que estranho não? Ficavam como bolotas: Uma casca enrugada e porosa por fora, e por dentro, gomos e sementes. Estranho...

Nesses dias milenares de solidão, entretanto, à tardinha, Eugênio recebia certas visitas. Estranhas visitas. Eram crianças, dezenas de crianças. Crianças feias, muito feias conjecturava eu, em meus tolos pensamentos, que logo eram captados por Eugênio, este grande vidente. – Não são feias amigo, nem bonitas! Dizia ele: -Convidamos à nossa casa, hospitaleiros, a Senhora Fealdade, que após instalar-se com outros alegres convivas, logo nos envolve, turvando-nos a vista com seus conceitos obtusos que passamos de imediato a usar, incorporando-os à nossa já deficiente visão de forma impudicícia e desavergonhada, como prisma. –Esses conceitos absolutos, prosseguiu Eugênio, são conceitos fictícios, meras abstrações intelectuais: Fealdade e beleza, não representando absolutamente o tônus da coisa observada, unicamente a aceção das aparências, representam conceitos falsos e ainda muito distantes da existência efetiva, que, muito embora pareçam apresentar-nos a realidade em si, não nos mostram mais que aparências, e isso tudo, fruto da imaginação obtusa daquilo que somos! Vê nosso Jardim, embora nada seja além de um simples e bucólico campo, causa, muitas vezes, estranheza ao visitante mais apegado aos conceitos do que às causas modais, ou seja, aos modos fundamentais da existência, que são, estruturalmente espirituais e não aparentes!

Continua...

Lobão
Enviado por Lobão em 17/05/2011
Código do texto: T2975437