A outra fome do mundo

Saiu em todas as capas de revista, foi comentado em todos os jornais. E despertou fantasmas adormecidos dentro de mim.

O escândalo das meninas anoréxicas que morreram na última semana vítimas dos novos padrões do mundo da moda trouxe de volta a minha batalha pessoal para colocar a cabeça nos eixos depois de uma luta silenciosa contra o mesmo problema, apesar de que não nas mesmas proporções.

Tudo começa devagar e quando você vê perdeu o controle sobre aquilo.

A idade é sempre essa, adolescência, onde você é a opinião que os outros têm de você, onde a andança em manadas faz com que as meninas se vistam iguais, falem iguais, façam tudo igual.

Com dezesseis anos fui morar fora de casa, e fora do país, com uma bolsa de estudos. Eu comparo esta experiência a nascer de novo. Principalmente naquela época quando uma carta demorava de sete a dez dias pra chegar ao seu destinatário, onde a conversa em tempo real era feita única e exclusivamente pelo telefone, onde dava pra ver os cifrões correndo junto com o diálogo. Tudo era novo, a casa, as pessoas, a língua, praticamente como nascer de novo.

Na fase de adaptação acabei afogando as minhas mágoas na comida. As dificuldades e os medos também. Comia compulsivamente, comia escondido, comia tudo que aparecia na frente. E quando vi tinha ganhado dez novos quilos em dois meses, se tudo isso.

Até então eu sempre fui do mesmo tamanho. Sempre. Nem um quilo a mais ou a menos. Na minha família ninguém é obeso, nem tem tendência para isso. Então acho que eu nunca havia pensado no assunto até as minhas calças aumentarem para 44.

Tudo acabou contribuindo para que eu fizesse o caminho de volta. O fato de não me reconhecer mais no meu corpo, o estilhaço que as estrias faziam a cada quilo novo, os comentários das pessoas.

Comecei elaborando um plano de dieta, mas eu sentia fome. Na verdade eu sentia ansiedade, mas ainda não sabia disso. Então caminhei até a farmácia e comprei um inibidor de apetite, que era vendido sem receita alguma, pendurado nas prateleiras como cotonetes. Tomava escondido e fui perdendo peso. Até aí ainda não havia tanto problema. O problema é que em algum lugar do caminho, que você não sabe identificar exatamente, a meta de perder 8 quilos vira a meta de perder mais 2 e mais 2 e mais 2. E você simplesmente não sabe a hora de parar. Então começam os outros sintomas e a vida que você comanda passar a ter controle sobre você. A sua vida gira em torno daquilo e nada mais.

Eu lembro de mentir que já tinha jantado pra não ter que comer. Eu lembro de reduzir as minhas refeições pra míseras 800 calorias, que é menos da metade que um ser humano saudável deve ingerir diariamente. Entre outras coisas fazia exercícios freneticamente e quando as pessoas começaram a achar que era demais, comecei a fazer exercícios escondida. Tinha horror a festas, pois tudo girava em torno da comida, e a comida, neste grau do problema é vista como inimiga, como uma coisa ruim. Ainda assim o espelho dos olhos não vê a verdadeira imagem que está refletida. É como deixar de enxergar direito, é uma distorção da própria imagem que hoje eu não consigo mais entender como acontecia.

E apesar de tudo, a fome passa a dar prazer, a pele grudada no osso dá prazer. Mórbido, mas dá.

Não perdi tanto peso assim. Apesar disso foram quatorze quilos, e levando em conta que eu já era magra no começo do processo, eu estava esquálida ao final.

Tive desidratação, febre alta, não tinha força pra subir as escadas, mas voltei pra casa antes que pudesse ficar pior.

Minha menstruação simplesmente não se manifestou durante este tempo, mostrando que realmente as coisas não estavam bem e agravando um distúrbio hormonal com o qual vou ter que lidar o resto da minha vida.

Voltei ao meu peso normal, ganhei mais peso, perdi mais peso. Fiz terapia, nutricionista. Foram cinco anos até que eu finalmente me desse alta deste quadro que acabou sendo acompanhado por outros adjacentes no caminho, mas que é assunto pra outra história.

Mas o mais importante foi que em algum momento eu percebi, graças à iniciativa também de um professor na época que foi o primeiro a nos mostrar um filme sobre anorexia, que havia algo de errado.

Nem todas conseguem enxergar, parar, nem todas têm pessoas para ajudá-las neste processo. Pelo menos na indústria da moda é o contrário que se vê. O que me gerou uma revolta sem tamanhos anos atrás ao ver em plena televisão brasileira o Clodovil criticar bestamente uma menina com anorexia que ele entrevistava falando que isso era frescura, pois tantas meninas queriam ser magras e ela estava reclamando à toa. Para mim equivale a falar para uma pessoa à beira de um precipício: “então pula”.

Este assunto é sério e deve ser tratado como tal.

Nem todo magro é anoréxico, mas a perda de peso excessiva e rápida deve ser analisada como doença, como já faziam nossos antepassados, para que mais meninas não precisem morrer para mostrar que nossos padrões estão como os espelhos delas: distorcidos.

Ana Carolina Paes
Enviado por Ana Carolina Paes em 22/11/2006
Reeditado em 23/11/2006
Código do texto: T298051