Demônios cotidianos

Os antigos rastros vermelhos que ela nunca enxergou agora foram sepultados e esquecidos de vez. E eu que tantas vezes me perguntava porque eu sempre olhava pra trás, quando o problema é que eu também sempre queria enxergar à frente. Assim como tudo na vida é um ciclo, maior, menor, ou tão grande que se pensa ser infinito, assim foi mais uma vez. Quem vai me repor todas as minhas regurgitações naqueles fatídicos horários de almoço? Era sempre a mesma cena. Ela vinha faminta, e eu multiplicava meu pouco espírito no muito que ela necessitava. Às vezes a autopiedade me invade e eu me vejo em um canto qualquer da sala vazia, com um cigarro na mão dizendo a mim mesmo que eu sou um sujeito bom, que eu tenho um grande coração. Outras vezes me surpreendo tanto com a minha mesquinhez que tenho medo de dormir sozinho. Penso que vou acordar no meio da madrugada e fazer o mal a meu corpo, a meus sonhos. Todos os dias eu queria gritar aos céus, pedir desculpas a todos que magoei, passar mais tempo com meus pais, ajudar um idoso ou deficiente a atravessar a rua e ouvir agradecimentos, porque é maravilhoso ouvir um “obrigado”. Mas eu não sou assim. Nem sei se deveria ser. Só sei que meu corpo não se encaixa com meu espírito, e esse por sua vez, não se encaixa com minha mente.

Era disso que eu tinha que escapar. Não queria lhe desejar coisas mais que ruins. Queria me preocupar com as ervas daninhas em minha horta ou com algum conserto por fazer na encanação de minha casa. Mas quando o vento pára, quando tudo está perfeito aparentemente, quando todos me vêem sorrindo, a autopiedade me invade... menino bom. Menino mal. Olho pra trás, olho pra frente.

Marcelo Mosque
Enviado por Marcelo Mosque em 22/11/2006
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