Amigos (In)certos. 

 
Alguns amigos o são para sempre. A vida nos separa, mas ocasionalmente nos junta e é como se o tempo tivesse parado naquele último encontro e só agora recomeçado. Outros amigos apenas passam. O são por um tempo, suficiente para deixar uma marca, mas é só isso. São importantes, mas sua importância é relativa aquele tempo e nada mais.

Ontem passei por um desses amigos. Uma amiga. Vínhamos caminhando pela mesma calçada, de lados opostos. Pensei, feliz: vou cumprimentá-la quando nos cruzarmos. Mas ela nem me viu. Caminhava curvada, cabeça olhando fixamente os próprios pés. Enquanto eu descia, ela subia. Havia uma escada em nosso caminho e um pintor encarapitado nela e nos cruzamos junto à escada: só que ela nem viu a escada, passou por debaixo dela e seguiu seu caminho cabisbaixa. E enquanto ela se perdia em seus pensamentos eu pensei nela por muito tempo e no tempo em que tivemos certa amizade.

Nossos caminhos se cruzaram quando mudamos de casa. Meu pai queria aumentar a área de nossa Fábrica de Pães e da própria casa, que era em cima. Queria dar mais conforto a família, uma escadinha de dez filhos. A casa escolhida ficava perto da nossa casa, em outra rua, mas praticamente em linha reta da nossa. Era uma casa antiga, com um jardim lateral e um enorme quintal cheio de árvores frutíferas. Quase uma chácara. Foi ali que certa tarde triste enterrei as cartas e os presentes de um amor não correspondido, aos pés de um abacateiro. Uma casa inesquecível que o progresso derrubou. A casa se parecia com uma matriocha: era um cômodo dentro do outro, todos com entrada e saída, um verdadeiro labirinto. E tinha um porão. E janelas ao nível da rua onde em noites enluaradas era possível fazer serenatas. E nós tínhamos um ratinho de estimação que assistia televisão conosco. Foi ali que nossos caminhos se cruzaram e ficamos amigas. 
 
Vamos dizer que seu nome fosse Francisca. É um bom nome, como qualquer outro. Era um pouco mais velha do que eu, mas isso não justifica a sua postura encurvada, os seus olhos baixos fixos no chão. Não conheço nada de sua vida que justifique essa postura de abandono, de desânimo. Naquele tempo ela era bem animada – tinha um namorado doido de pedra e foi isso que nos aproximou. Ele escrevia-lhe lindas cartas em Inglês e exigia que ela respondesse na mesma língua. Foi então que ela veio me procurar, porque se eu sabia quase nada, o que ela sabia era nada mesmo. Teve início então um triângulo amoroso epistolar que durou muito tempo. Até que ela caiu na real e descobriu que o jovem era doido de hospício. Por essa ocasião voltamos para nossa casa e nossa convivência arrefeceu. Soube, mais tarde, que ela se casou com um estrangeiro bem estranho, um estrangeiro sem nenhuma ligação com nossa cultura. Tiveram dois filhos e quando ele morreu voltou para casa, não ficando muito tempo viúva. Casou-se logo outra vez com um viúvo pai de filhos adultos e já com um pé na cova e logo ficou viúva. Soube que agora mora perto de mim outra vez, mas não vejo perspectiva de reatarmos nossa amizade. É como se estivéssemos separadas pelo espaço infinito e por pontos de vista extremamente diferentes: enquanto ela olha para os pés eu miro o espaço infinito.