TEMPESTADE

Era uma casa antiga de fazenda, situada num vale e plantada ao sopé de uma montanha bem alta e podíamos ver, lá em cima, uma cicatriz de um grande deslizamento que rolara em tempos remotos. Acho mesmo que a casa fora feita justamente na parte final daquela grande massa de terra que outrora desgarrara do cimo e descera até o lugar onde ainda resta. Tanto de um lado como do outro, o vale tinha grandes erosões provocadas pelas águas das chuvas que despencavam das vertentes, viravam rios, se juntavam e formavam uma só saída, um pouco abaixo da casa grande. Então nós estávamos acuados: na frente, o barranco ameaçador e dos lados, fechando a saída, a enxurrada consequente das tempestades.

Na época do verão era o caos. Quando as nuvens de tempestade começavam a levantar lá para o lado da Tapera, perna pra quem te quer! Pro lado do São Bento podíamos ficar tranquilos Às vezes, de madrugada, mamãe acordava todo o mundo e deitávamos caminho abaixo em direção à casa da vovó, tão logo se ouvia o som dos trovões ameaçadores. Eles, para nós, criados no regime do medo, eram ameaçadores. Vovô costumava dizer que aquele morro poderia descer novamente e com a enxurrada de um lado e do outro, como é que nós iríamos sair dali? Dar no pé enquanto é tempo! Mais um medo, meu Deus! E nós já tínhamos tantos!

E lá íamos, qual uma fila de fantasmas. Fantasmão na frente – papai - segurando um lampião ou, quase sempre, uma tocha feita de um gomo de bambu cheio de querosene e com uma bucha de estopa servindo de pavio. Demais fantasmas atrás, enrolados em cobertores ou lençóis, pois, às vezes, tomávamos chuva no caminho. Diva, uma das minhas irmãs, quase sempre berrando. De longe, os moradores à beira do caminho já sabiam o que estava acontecendo e nem se importavam mais.

Época de chuva é também a das plantações, das colheitas. O terreiro da casa servia para secar o arroz, feijão. Se começasse trovoar, os empregados lá chegavam hora que fosse e iam guardar a colheita em qualquer lugar, até mesmo dentro da sala de visitas. Só depois é que o trenzinho dos medrosos crônicos se punha a andar. E Diva berrando...

Quando chegávamos à casa da vovó um sentimento de segurança nos acalentava, mas a inferneira começaria agora.

Existia lá energia elétrica produzida pela roda d’água própria e um montão de fios entrando na casa. Havia também telefone municipal ligando a sede do município ao distrito de Valão do Barro e, nesse trajeto, iam-se colocando terminais nas fazendas.

Quando se queria falar, davam-se tantas maniveladas quantas fossem os sinais para aquela fazenda. Na do vovô eram quatro: triiim (parava) triiim (parava) e assim por diante, até quatro triiins. Ai pegava-se a manivela, dava um sinal longo, retirava o fone do tamanho de um soquete de feijão do gancho e falava pelo bocal preso à frente do aparelho. Todos da rede que quisessem ouvir ouviam. Nada de sigilo. Mesmo assim, havia até namoro...

Esse monte de fios era uma tremenda e eficiente antena para captar raios e, adivinhem para onde eles iam? Estourar dentro da casa. Capetas a nos infernizar.

E ai era aquele bafafá louco: cobriam-se os espelhos, afastava-se qualquer coisa de ferro, queimava palha benta, jogava sal grosso no fogão à lenha, reza e mais reza, todo mundo deitado. Um verdadeiro ritual de horror! Eu fechava os olhos para não ver o relâmpago, porque tinha mais medo do trovão (burro!) e a espera pelo ruído mais ainda me angustiava. Mas na casa do vovô a campainha do telefone tocava sempre com um relâmpago mais forte, avisando que vinha canhão! O jeito? Tapar os ouvidos também, ué!

Chuvinha mansa, daquelas que hoje a gente diz ser frente fria estacionada, eu até gostava, apesar de ficar três ou quatro dias dentro de casa. A casa era alta e ao lado existia o paiol, tulha para outros, onde se guardava tudo, inclusive o milho. Descascavam-se as espigas e as palhas eram jogadas ali mesmo, servindo para o gado comer, acender fogo pela manhã, fazer peteca, para enrolar o fumo e fazer cigarros e também para limpar o pente. Nossa! Não há nada melhor para limpar pente fino.

As goteiras pingavam devagar e as gotas cadenciadas acertavam as palhas que estavam em baixo e produziam sons variados. Eu ficava um tempão ouvindo-os e matutando, matutando! E assim, eu também brincava com aqueles pingos. Eu arranjava um jeito de brincar também com a chuva. Brincar era a palavra de ordem para as crianças da minha geração!

Será que hoje eu ainda acharia mágicos os sons dos pingos da chuva despencando sobre a palha do milho? Qual! Não há mais nenhum restinho daquela casa. Não há mais goteiras. Nem existe mais aquele paiol de milho e nem tão pouco aquela criança em mim. Já não sei mais apreciar as coisas simples e belas. Acabou tudo!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 04/06/2011
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