A Mudança (EC)

A Mudança (EC)

 

 

 

 

Uma vez nos mudamos de uma casa para outra, na mesma rua, quadra e meia adiante. Eu, a parceira e a molecada carregávamos os trastes pelo meio fio. Um idiota do condomínio disse: vocês parecem um bando de retirantes. Idiota. Outra vez um grande amigo me ajudou a carregar as caixas. Ele olhou nos meus olhos sabendo que aquela mudança estava doendo. Me lembro como se fosse ontem, chovia a cântaros, inesquecível chuva de mês inteiro em outubro de 95. No ano seguinte, no mesmo mês, nascia minha filha Carolina. Outra mudança. Uma vez mudei do vinho para a água. Outra joguei os cigarros na lixeira e passei a fumar charutos. As pessoas se mudavam para longe, cada vez que eu acendia um Cohiba. Bons tempos.

 

Mudei de casa aos 5 anos, depois aos 11, depois aos 15, depois aos 23. Com 23 casei e mudei. Sete anos depois nasceu meu filho Felipe. Revolucionária mudança. Muita coisa ganha nova configuração em 7 anos. Tive escritório na Faria Lima, num predinho caindo aos pedaços, depois meiamos uma casa no Bexiga, depois um cubículo em Moema, depois um lugar descolado na Vila Nova, para voltar ao Itaim e por fim aos cafundós. O show não para.

 

Detesto mudanças. Se morresse a cada mudança o cemitério estaria repleto de réplicas minhas que se recusaram a mudar. Mudo de idéia, no mínimo, 3 vezes por dia, dependendo do clima, pois o clima influencia as minhas idéias. Ouço a mesma música há 26 anos. Acho que teria um infarto se alguém mudasse a minha lista de músicas no computador e esclareço que antes do computador eram as fitas cassete e antes delas o toca discos. Pareceu piada quando percebi que algumas pessoas não acompanharam essas mudanças, até eu abrir a primeira revista importada de informática.

 

Fellini dizia que sempre fez o mesmo filme, com algumas variações.

 

Muda dentro e fora, fora muda num relance, dentro demora, custa a passar, e mesmo assim, num instante, percebe-se uma incrível mudança para noutro instante se balbuciar, quase num lamento, que não mudou nada.

 

Acreditava mais em mim e menos na fé, mas com a idade isso muda e, tenho fé, as coisas mudam para melhor.

 

Acreditava em coisas perpétuas e almejava transferências que, mal sabia, seriam daninhas. Sempre o mesmo processo: para desacreditar é preciso, antes, acreditar. O gradiente da vida não comete erros em sua genialidade.

 

A perspectiva de mudanças futuras ainda me descolora os cabelos, mesmo se me atestarem que será em meu benefício.

 

Ora essa, aquele filme não sai de cartaz. O elenco daquela peça é sempre o mesmo. Meus avós ainda moram naquela casa. Aquele terreno baldio continua enfeitado com pés de mamona. Qual, o finito se transfigura como a gota da chuva numa folha de guambê e mesmo à revelia teria de confessar mil vezes que meu terceiro nome é mudança.

 

A adjunção das raízes que me irrigam, as reconciliações prometidas e não cumpridas, a lua que cresce e diminui, a maré que enche e esvazia, meu ego que infla e desinfla, os sonhos que vem e os que nem podem ser sonhados, tudo isso implementa a dor que ri de si mesma numa falsa alegria e forja a alegria que às vezes me dá de saber que tudo isso está junto. Enfim, as raízes irrigam e a árvore continua a crescer. Para onde nem sei.

 

Mudanças, ora bolas, já mudei tanto que por mim imobilizava tudo e me mudava para a terra do horizonte fixo, da água tépida, do ar que beira o morno, do fogo que aquece e ilumina sem queimar, do vento que não é ventania e da palavra que desconhece vilania. Mas não. Demoliram o cinema e o elenco da peça transmutou-se noutro, falando um idioma incompreensível. Para sabê-lo urge mudar e ainda assim corre-se o risco de perder o bonde.

 

Fico por aqui, reclamando do frio e ciente de que a palavra final não me pertence.

 

Continua me contentando a história do mágico que chega num vilarejo e vai ser testado por dois moleques. Com as mãos escondidas atrás das costas um dos moleques fustiga o mágico. Tenho um passarinho aqui comigo, ele está vivo ou morto? O mágico retruca que se responder que está vivo, o moleque esgana o passarinho. Se disser morto, ele abre uma das mãos e o bicho voa. Depende de você, diz o mágico.

 

Por hora isso também não sofre alterações.

 

 

(Imagem: John Atkinson Grimshawm, Homeward Bound, Painted in the 1880-90’s)

 

 

Para textos melhores:

http://encantodasletras.50webs.com/amudanca.htm

 

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 06/06/2011
Reeditado em 28/10/2021
Código do texto: T3018466
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