Agente impiedoso

Joaquim e Manoel são irmãos. O primeiro tem por complemento nominal as designações de família. Chama-se Joaquim Bragança da Silva. O segundo atende pelo nome de Manoel Bragança Júnior, herdado do pai, por ser seu primogênito. Manoel Bragança é natural de Trás-os-Montes, a nordeste de Portugal, ao Norte da região do Douro, onde são produzidos excelentes vinhos: os tintos, frutados, e os brancos, suaves, com aromas florais.

Em meados de 1960, aos vinte anos de idade, Manoel Bragança mudou-se com esposa e filhos para o Brasil. Saíra de Portugal, fugindo da ditadura de Antônio Oliveira Salazar, iniciada em 1932. Salazar inspirou-se em outro ditador, o italiano Benito Amilcare Andrea Mussolini, baseando sua política no regime fascista que durou até ser derrubado pela revolta popular, denominada Revolução dos Cravos, em 1974. Radicou-se no Rio de Janeiro, apoiado por patrícios residentes na cidade maravilhosa. Em aqui chegando, trabalhou como padeiro, em estabelecimento de um gajo, seu parente, nascido no distrito de Bragança.

Os filhos Joaquim e Manoel, torcedores fanáticos do Vasco da Gama, perderam os pais para doenças próprias da velhice, em 2001. Os corpos foram enterrados em cerimônia que contou com a bandeira cruzmaltina envolvida no caixão.

Em 2002, Joaquim e Manoel aproveitaram os bons ventos que ajustaram a combalida economia do Brasil, e viajaram, pela primeira vez, à terra natal de seus genitores. Chegaram a Lisboa no mês de julho, em dia de fortes ventos, com sensação térmica inferior à refletida nos termômetros do Hotel Mundial, onde se hospedaram.

Depois de conhecerem alguns parentes, os portugueses visitaram as ruínas do Castelo de São Jorge, onde se iniciou a cidade, a Rua Augusta, no bairro do século XVIII, projetado pelo Marquês de Pombal, o Largo do Chiado, ponto elegante da cidade antiga, as Praças da Figueira e da Restauração, o logradouro público em homenagem a Dom Pedro IV, cuja área é pavimentada de pedras portuguesas, e, no fim do dia, a Praça de Camões, poeta lusitano nascido em 1522 e morto em 1580.

Na tarde seguinte, conheceram o Convento do Carmo, destruído pelo terremoto de 1755, posteriormente restaurado, e a Avenida da Liberdade, o Champs Elisées lisboeta, com lindas palmeiras ao longo de seus 1.500 metros de extensão.

Durante os dias passados em Portugal, acompanhados de parentes e novos amigos, estiveram no Mosteiro dos Jerônimos; foram homenagear Luiz Vaz de Camões e ao navegador Vasco da Gama, em seus mausoléus, parecidos com obras de arte.

Finalmente, visitaram a Torre de Belém, as palácios de Queluz e de Sintra, o Santuário de Fátima, e outras localidades, que guardaram na memória para relembrarem posteriormente.

Ao retornarem ao Brasil, prometeram nova visita. Dessa feita, iriam à região de Trás-os-Montes e ao vale do Douro, onde seus ancestrais fincaram raízes.

O tempo passou rapidamente. Dois anos depois da primeira viagem, Manoel e Joaquim retornaram a Portugal. Em um barzinho da cidade de Braga, beberam vinho e comeram excelente bacalhau com os amigos. De um deles, ouviu:

– Os brasileiros dizem que quase todos os portugueses são chamados de Joaquim e Manoel. Isso não é verdade. Nós temos outros nomes, não é Manoel?

– Sim, Joaquim – respondeu o outro, confirmando, sem se aperceber, o que dizem os brasileiros a respeito deles, nesse particular.

A mesa em torno da qual se refestelavam de vinho e bacalhau abrigava quatro pessoas. Duas, chamavam-se Manoel. As outras, Joaquim.

Cinco dias depois de chegarem à Braga, ocorreu a morte de um parente, um tio, irmão do pai deles. A viúva, dona Maria de Orleans e Bragança, tomou providências para a realização das exéquias. Renomada funerária incumbiu-se dos preparativos.

Antes de iniciado o velório, Maria verificou que o morto estava vestido com um terno preto. A roupa desagradara a ela, e, por certo, ao defunto, que, em vida, odiava essa cor. Na tentativa de acalmá-la, o agente funerário garantiu-lhe trocar o terno preto por um azul turquesa. Outro cadáver, do mesmo porte, fora trazido com essa indumentária. O recém-chegado morto não se oporia à troca.

A viúva saiu satisfeita. Voltaria depois para confirmar a mudança e dar início ao velório. Ao retornar, abriu a tampa do esquife e viu o ex-marido trajando um terno azul turquesa, até um pouco sorridente, imaginara ela. Ai começou a chorar. Em vida, jamais vira o falecido vestido com a elegância daquele instante. O choro da velha senhora continuou, até que o agente perguntou-lhe se não ficara satisfeita com a troca.

– Estou encantada com sua consideração. A eficiência com que se dispôs a modificar a situação é digna de meus agradecimentos. Muito obrigada, senhor! Não entendo como o fez tão rapidamente.

O agente funerário respondeu:

– Foi fácil, senhora. Bastou-me trocar as cabeças dos mortos.

Dona Maria despencou. Caiu fulminada por violento infarto. A obra macabra do agente funerário surpreendeu a família dolorosamente.